Crítica de filme

Crítica 1 | ‘The Batman’: Tradições

Publicado 3 anos atrás
Nota do(a) autor(a): 4,5

O filme noir é um motivo eterno de debate nas discussões de cinema. Começa pelo fato de que, surgido na era de ouro hollywoodiana, só foi ser reconhecido – e nomeado – retroativamente, depois de anos de estudos e visitas ao suposto gênero. Suposto pois, em seu ápice, o noir não “existia”. Havia tendências e uma moralidade que fora transformada em linguagem, mas não se percebia como um gênero naquele momento. O termo foi cunhado e debatido anos depois das exibições de clássicos identificados como noir, tipo Pacto de Sangue (Billy Wilder, 1944) e À Beira do Abismo (Howard Hawks, 1946). 

No cerne do “gênero” existe um sentimento muito típico daquele momento. O mundo tinha acabado de sair da Primeira Guerra e os Estados Unidos baniu a fabricação, transporte e comercialização das bebidas alcoólicas, período conhecido como Lei Seca. Esses dois fatores contribuíram para uma marginalização de grande parte da população pobre que, depois dos esforços de guerra, voltaram para o país sem qualquer tipo de suporte, seja monetário ou psicológico. Com as práticas da guerra frescas em sua cabeça e um mercado ilegal insurgente de bebida, o empenho foi direcionados para o crime organizado.

The Batman
© 2021 Warner Bros. Entertainment Inc.

Nenhuma escolha estética existe no vácuo. Os crimes encabeçados por mafiosos, combatidos por detetives e vislumbrados por belas mulheres foram a forma da indústria cinematográfica de comunicar a crescente violência urbana decorrente do abandono do estado. O crime é o signo da desordem social, e, a partir da década de 1950, como em Passos na Noite (Otto Preminger, 1950), signo da desconfiança das instituições. É nessa chave que somos brindados com The Batman.

O filme do Homem-Morcego possui várias relações diretas com aspectos superficiais do cinema noir: Bruce Wayne tem um diário que funciona como sua narração em off; Selina Kyle é sua femme fatale; há uma investigação em curso ao longo das quase três horas do filme, a chuva é constante e castiga os moradores da sombria Gotham. Todos esses elementos que de antemão são lembrados quando o gênero é mencionado lá estão. Porém, o que há de melhor na obra é a relação com as raízes do gênero. A cidade de Gotham está corrompida há mais de vinte anos, suas instituições falharam e um vilão, o Charada, está incumbido de limpar a cidade. (Não é à toa que a cartada final é inundar Gotham)

O que era identitário nas imagens do cinema detetivesco lá na era de ouro, a técnica chiaroscuro do Renascimento e as influências do Expressionismo Alemão conversam diretamente com o fundamento do Batman: ele é uma figura da escuridão, manifestando-se como um pesadelo humanóide. Sua verdadeira condição é a sombra. E se Zack Snyder em Batman vs Superman (2016) entendeu, mesmo que minimamente essa conjuntura, Matt Reeves tirou de letra. Selina questiona se o fetiche de Batman é chegar de mansinho pela escuridão. A cena de invasão ao escritório de Falcone é o melhor exemplo disso. A sequência é iluminada única e exclusivamente pela luz que é expelida pelas armas dos capangas, com o herói banhado nas sombras. Lembra, inclusive, uma das cenas iniciais do terceiro Planeta dos Macacos, também do diretor. Temos, incrivelmente, pouco Bruce Wayne no filme. O foco é mesmo na figura do morcego, sendo essa uma fala de Charada para o herói: “Esse é você de verdade.”

The Batman
© 2021 Warner Bros. Entertainment Inc.

A relação do Homem-Morcego com a escuridão vai desaguar num aparato extremamente cinematográfico: o olho. Ele se apropria da escuridão e, a partir dela, encontra-se na figura observadora, também fundamental no arquétipo do detetive. Bruce Wayne é um voyeur, Batman possui uma lente que registra tudo que foi visto durante seu uso, podendo retornar e revisitar acontecimentos presenciados. Nenhum canto da cidade escapa do seu olhar superior. Nem mesmo a boate clandestina do Pinguim, em um momento que Batman leva seu “fetiche” à outra esfera: o olhar do outro. Selina utiliza a lente que faz com que sua visão seja a de Batman, o olhar dos dois é um só. O olho e o olhar são alicerces do filme e em diversos momentos as personagens vão utilizar essa terminologia para se expressar. Quando Gordon confronta Oz depois da cena de perseguição, o policial grita a plenos pulmões: Abra seus olhos. Depois de sumir por um tempo, ao precisar entrar em contato com Batman, Selina ativa a lente que ficou com ela e pergunta “Você pode me ver?”, ao passo que ele responde “Sim, eu te vejo”. Ver e ser o não visto.

O grande mérito de The Batman é enxergar-se como filme, pensar a partir de tradições cinematográficas, relacionar-se com momentos da própria sétima arte. Óbvio que existem referências aos quadrinhos, principalmente à Ano Um, de Frank Miller e David Mazzucchelli, já que esse é o segundo ano de Batman ativo, mas o filme faz o que na DC já tinha sido “testado” em Coringa: conversar diretamente com recortes cinematográficos. Se Todd Phillips estava interessado num simulacro da versão setentista de Martin Scorsese, Reeves vai buscar sua inspiração no cinema clássico dos anos cinquenta.

Por isso a utilização de vilões urbanos é tão acertada em The Batman. Carmine Falcone e Oswald Cobblepot são a representação do submundo que corrompe tudo ao seu redor. Uma ideia muito desenvolvida no cinema clássico do pós-guerra é a coação. Em um mundo fatalista, paranoico, impiedoso, as ações são respostas a constrangimentos, são imposições, muitas vezes motivadas por separações de classes. E assim é Gotham. Dos promotores e juízes envolvidos nos escândalos até o próprio Batman seguindo as pistas do Charada, todos parecem compelidos a realizarem tais ações, aparentam sempre agir contra suas vontades, que há muito tempo foram perdidas no emaranhado em que se meteram. Assim como Thomas Wayne, que depois de tentar calar, sem sucesso, um repórter que colocaria o legado dos Wayne em risco, pediu ajuda a Falcone, que assassinou o jornalista. Após a morte de Thomas, Carmine transformou-se no verdadeiro prefeito da cidade, tomou o projeto bilionário Renovação de Gotham, utilizou-o como fachada e criou um duradouro e enraizado esquema de corrupção que durou vinte anos.

E quem vai combatê-lo é exatamente o Batman… e o Charada. A investigação que discorre ao longo do filme não é o foco da obra, sendo apenas um pretexto para um movimento interessante do cineasta: aproximar as figuras teoricamente opostas. Charada se intitula como apenas uma ferramenta, mas é ele quem, na verdade, instrumentaliza o Homem-Morcego. O vilão, inclusive, em uma versão muito moderna frequentadora de Chan na internet. Esse submundo virtual de homens excluídos que enxergam nas humilhações e muitas vezes nos atentados físicos a expurgação de todo mal que a sociedade fez a eles. Mesmo que Bruce seja um alvo do vilão verde, o objetivo dos dois é o mesmo, e o filme está interessado nesse flerte do Batman com as possibilidades que o Charada apresenta. O herói prontamente nega essa aproximação, mas ela invariavelmente existe.

Com um grande atuação de boa parte do elenco, destaque para Zoe Kravitz impecável numa Mulher-Gato articulada, tórrida e muito física, que mesmeriza o olhar (voyeuristico, como já apontado) de Bruce e do público. Todos os personagens pulsam nas gélidas ruas de Gotham, mas ela desliza como se, mesmo sem posse alguma, fosse a dona do lugar. Robert Pattinson é provavelmente o melhor ator de sua geração e aqui continua sua caminhada de grandes filmes. O destaque não tão positivo é que Paul Dano em alguns momentos está mais para o Coringa e sua instabilidade do que o Charada incel, destoando um pouco do aspecto social dos outros vilões mafiosos. 

The Batman
ZOË KRAVITZ como Selina Kyle em “THE BATMAN,” © 2021 Warner Bros. Entertainment Inc.

The Batman é um filme ambicioso, tem três horas de duração, o que é pouco comercializável, debate, mesmo que minimamente, classe (Mulher Gato questiona Batman com um “Escolhas? Você acha que tivemos escolhas?) e as relações de poder entre espaço e indivíduos, já que Gotham City é uma das mais importantes personagens na trama. Um filme que se distancia da pseudopsicologia de Christopher Nolan e sabe fazer uma conversa substancial entre a mitologia do morcego e as raízes estilísticas da tradição noir.

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The Batman Poster
País: EUA
Direção: Matt Reeves
Roteiro: Matt Reeves, Peter Craig
Idioma: Inglês

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