Drive My Car já é um fenômeno dentro do cinema mais nichado. Se The Batman vem para aparentemente ser o filme do ano com o público de massa, o filme de Ryusuke Hamaguchi vem ganhando cada vez mais apelo entre os cinéfilos mais fervorosos. Como aponta bem Filipe Furtado em seu curto comentário “todo ano tem aquele filme que toda a cinefilia concorda” (veja aqui) e claramente esse é o caso aqui.
Leia a crítica 1 de ‘The Batman’
Leia a crítica 2 de ‘The Batman’
É difícil ser inventivo na crítica depois de tantos nomes de respeito já terem se pronunciado, então me deixei seduzir por uma leitura mais filosófica do longa (que particularmente não vi em lugar nenhum) – mas admito que é difícil desenvolver um texto que foge da tentação que é falar do genial prólogo de 40 minutos, brilhantemente dirigido e interpretado.
O ator e diretor de teatro Yusuke Kafuku é convidado a encenar O Tio Vânia de Tchecov num festival em Hiroshima. No carro em que se desloca, conduzido pela discreta jovem Misaki, Kafuku confronta-se com o passado e o mistério sobre sua mulher, Oto, que morrera subitamente levando um segredo com ela.
É um tanto quanto axiomático um filme sobre perda se confluir até Hiroshima, talvez o evento mais traumático da Segunda Guerra depois dos campos de concentração; as bombas atômicas americanas foram responsáveis não só por dizimar duas cidades, mas segundo Zygmunt Bauman, mudar a forma como se pensava o mundo. Anuncia-se ali o fim da Modernidade.
Viria então a era da pós-modernidade, onde tem-se um desencantamento em relação à ideia de um futuro garantido, promovido pelas leis da história, necessariamente melhor e redentor. Seria então que grandes teorias narrativas, como Marxismo, Psicanálise ou Positivismo, perdem força com a negação de qualquer fundamentação última; não existiria o real, apenas narrativas sobre o real. Assim, para o autor Jean-François Lyotard, toda visão totalizante que tenta criar uma relação de causa e efeito com a realidade estaria em queda – é o que ele chama de “fim das grandes narrativas”.
No filme temos nada mais, nada menos, do que uma exposição implícita disso. Tanto Yūsuke quanto Watari passam por tragédias inimagináveis em suas vidas, e tentam forçar uma relação de causa e efeito. Confinados na possibilidade de ter tentado evitar fatalidades pessoais, vivem na improbabilidade do “e se”.
O fim Drive My Car, que é em um primeiro impacto um filme sobre perda, acaba sendo uma obra sobre esperança. Os protagonistas deixam pra trás – mesmo que num nível subconsciente – essas narrativas de causa e efeito depois dessas catástrofes, porém, contradizendo a teoria de Lyotard em A Condição Pós-Moderna, o futuro pode não ser garantido, mas sem dúvida oferece perspectivas.
O ritmo lento faz com que as longas três horas de duração fiquem pesadas para o expectador mais desacostumado, porém vale a pena. O filme japonês foi indicado a quatro Oscars: Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Diretor, Melhor Filme Estrangeiro (pelo qual é absoluto favorito) e uma surpreendente – apesar de justificável – indicação a Melhor Filme.