Crítica de série

Crítica | ‘Succession’ – 4ª temporada

Publicado 1 ano atrás

Nota do(a) autor(a): 5.0

O que faz uma obra audiovisual ser boa? Existe uma eterna e infrutífera discussão acerca desse tópico, sendo o “roteiro” uma das supostas razões mais citadas, no sentido de história, diálogos. É uma visão da qual discordo veementemente, já que acho uma impossibilidade lógica palavras num papel serem a coisa mais importante em um trabalho composto por áudio e vídeo. 

O que faz um filme ou uma série de TV serem considerados bons é talvez uma resposta simplista, genérica e decepcionante. O que os faz perdurarem, serem relevantes, lembrados e influentes são boas cenas. Parece uma resposta anticlimática, mas é a única que compreende a proporção tridimensional do audiovisual. Por mais que a concepção de cena e dramaturgia não seja exclusiva do cinema, veio do teatro, ela é quem compreende as diversas ferramentas dispostas nessa linguagem: o texto, a câmera e os corpos. 

Succession é movida por questões dramatúrgicas. Nos diversos materiais periféricos à série que são veiculados, os bastidores no YouTube e os podcasts com integrantes da equipe, esse termo sempre vem à tona. Não são poucos os elogios dos atores e diretores à escrita de Jesse Armstrong e sua capacidade de escrever grandes cenas em cenários banais ou momentos “não-lógicos” dentro da ambientação empresarial. O que talvez fosse ouro em algumas séries, aqui é um apêndice. Questões judiciais importantes no cosmo do show são descobertas através de fofocas de corredores, e não grandes cenas de tribunais, porque o mais importante não é a decisão, mas seus efeitos: a memorável cena de Tom (Matthew Macfadyen), o genro que se sacrificaria pelo conglomerado, descobrindo no boca-a-boca que não vai pra cadeia e em seguida destruindo o puxadinho do primo distante Greg (Nicholas Braun) na empresa. 

A série, desde a sua segunda temporada, sofre com uma crítica que vem de não entender essa proposta. A ideia de que a história não vai pra frente, que é sempre a mesma coisa, os filhos tentando derrubar o pai ad infinitum e, por mais que a estrutura seja repetitiva em alguns momentos, a obra é muito mais sobre as transformações a que se sujeitaram os filhos para caberem nessa caixa do pai do que qualquer outra coisa. É uma série que nunca pensou em alçar voos narrativos esquisitos, pelo contrário, existem tradições firmes que jamais se abalam, como os casamentos e todas suas tragédias ao redor. 

Inclusive, o “Casamento de Connor”, terceiro episódio da quarta temporada, é um dos mais memoráveis momentos da TV americana. O episódio da morte de Logan (Brian Cox), o pai da família, tem na sua concepção e condução escolhas que acredito não termos visto outrora. Uma espécie de reação em tempo real ao distante óbito de seu pai, que morria em um avião rumo à Europa. Uma ligação e os irmãos, em uma sala separada para não encontrar eventualmente o pai durante o casamento, desabam. A câmera acompanha, quase que em um ritmo de ao vivo, as lágrimas e o catarro que escorrem nos engomados rostos no luxuoso barco. O gritante contraste do matrimônio celebratório com o inesperado óbito. A morte dentro do símbolo de nova vida. 

Tom, ao lado de Logan em seu derradeiro momento, sugere que os filhos despeçam-se de seu pai, e assim eles o fazem. Por mais que eles estejam obviamente em choque, tudo que envolve a despedida é completamente agridoce. Roman (Kieran Culkin), o primeiro a falar no ouvido do moribundo pai, diz que “você está bem, ficará bem, porque você é um monstro”. Shiv (Sarah Snook), do alto da sua condição mimada, diz “eu não posso ter isso”. A primeira reação de Connor (Alan Ruck), em seu grande dia, foi dizer que “ele nunca gostou de mim”. A grande questão é que é basicamente impossível puramente elogiar ou agradecer Logan Roy. É necessário xingá-lo e culpá-lo, mesmo que em seus momentos finais, por tudo que ele fez com suas crias. 

Essa lógica repetir-se–á no penúltimo episódio, “Igreja e Estado”, de seu sepultamento. Seu irmão Ewan (James Cromwell) profere um poderoso discurso que joga uma luz nas possíveis raízes da maldade do coração de Logan, sem necessariamente desculpá-lo ou redimi-lo de seus atos, mas simplesmente nos elucidando. Roman é incapaz de fazer o discurso e se esfarela na frente de todos enquanto Kendall (Jeremy Strong) assume a missão e entrega um dos melhores momentos da personagem, que neste momento vem numa crescente, desde o episódio Living+. O discurso de Kendall também aponta para duas direções, a dureza do pai, mas sua capacidade de prover. Logan Roy alcançou tudo que tinha porque conseguiu ser quem queria. E quem ele queria ser era na maior parte do tempo um ser desprezível, antiquado, predatório, que vencia as competições de “quem tem o pau maior”, mas ele conseguiu. 

A série termina com Kendall e Shiv disputando o voto de Roman no conselho, porém Kendall descobre que a irmã não será escolhida pelo sueco para ser a CEO da empresa e eles se unem uma última vez, decidindo vetar a venda e coroar Kendall como o sucessor. A última sequência filmada para a série, o encontro dos irmãos na casa da mãe em Barbados, é o último momento que nos lembra por que por tantos anos a série foi vista, também, como uma comédia. Um momento leve e espirituoso constituído pela lambida de Roman no queijo especial de Peter, marido de sua mãe, e Shiv montando um shake nojento de leite, molho picante, cascas de pão, picles, ovos crus, pó de cacau e seu próprio cuspe para Kendall beber (Jeremy Strong realmente tomou a mistura), e Roman derramar o resto na cabeça do irmão escolhido para levar a empresa adiante. Novamente, no campo narrativo, é importante pela escolha do representante da família, mas esse pensar fica diminuto frente ao verdadeiro coração da sequência, que reside na despedida do elenco e no coroamento simbólico do irmão.

De volta a Nova Iorque ele, inclusive, senta-se por alguns segundos na cadeira do pai, com a permissão dos irmãos, e depois seguem para a votação. Durante esta, no momento do parecer de Shiv, ela sai da sala. Por ela estar grávida, pode se tratar de um mal estar. Porém, a verdade é que ela simplesmente não suportaria a ideia de ver o irmão no controle da empresa. 

A discussão que se segue, novamente, não possui diferencial no campo narrativo; toda a fundamentação vem de ideias puramente cênicas. Os irmãos discutindo em voz alta, como crianças (um dos últimos momentos de Logan Roy em cena foi dizendo “eu os amos, mas vocês não são pessoas sérias”), Kendall fazendo revisionismo da morte que cometera como a última esperança de se agarrar ao que lhe fora prometido aos sete anos, gritando “EU SOU O MENINO MAIS VELHO”, tudo, tudo que há ao seu alcance para o tão prometido cargo. “Eu sou uma peça feita para caber em apenas uma máquina”, entoa desesperado. E é verdade. Kendall cresceu com a ideia de que sucederia o pai, mas isso não aconteceu. Sua grande diferença pra Logan é essa, Kendall não se tornou quem gostaria. “Eu sinto que, se eu não puder fazer isso… Eu posso morrer”. 

“Nós somos uma merda”, diz Roman, concordando com o que seu falecido pai lhes disse há pouco tempo atrás. Após Roman insinuar que os filhos de Ken são “falsos”, eles entram em uma interpolação física na qual Kendall faz questão de abrir as feridas de Roman e não de uma forma metafórica. Shiv decide ir contra o irmão e, ao voltarmos à sala onde a votação está acontecendo, uma interessante escolha de palavras sai da boca de Frank para Kendall: “você não tem”, referindo-se, obviamente, ao total de votos, porém, funcionando também numa dimensão comparativa que todos os três viveram nessa corrida para tomar o lugar do pai. Como se fosse um “você não tem o gene, a maldade inerente”.

A coroa da sucessão não ficaria com nenhum deles, mas com Tom, o semi-divorciado de casamento renovado graças a manobra de sua agora infeliz esposa Shiv. Apesar do genro baba-ovo ter conseguido o cargo mais desejado, trata-se de uma fachada. É uma relação de ventriloquia: Matsson comanda Tom com uma mão metafórica em sua bunda. Essa escolha pelo CEO americano não foi a toa, já que no grande episódio do aniversário de Kendall, no supracitado momento que Tom descobre que não irá para a cadeia, Logan cochicha poderosamente em seu ouvido “eu me lembrarei”. 

É engraçado pensar que talvez o grande produto televisivo dos últimos anos, a maioria das personagens termina onde começou. O que é contra intuitivo em qualquer livreco de roteiro por aí que distorce nossas percepções sobre assistir audiovisual, é a maior força da obra. No percurso para se manter imóvel, todos perderam muito, ganharam pouco e comprometeram tudo. 

A cena final não poderia ser outra: Kendall, com o antigo guarda-costas do pai, contempla a água no Hudson River. É até surpreendente que após a derrota ele não tenha atentado contra a própria vida e Mark Mylod sabe que o público de alguma forma espera isso, dado o histórico de Kendall com a simbologia do elemento no show. Ele pode não ter tirado a própria vida na frente do telespectador mas, a sua irmã, com toda certeza o fez. A simples cena final flerta a todo momento com a possibilidade da personagem causar algo contra si mesmo, e mantém a tensão nas alturas com qualquer movimento por intermédio não das palavras, já que é uma cena silenciosa, mas, apenas, do grande motor motivador do show: a dramaturgia.

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succession poster

País: EUA

Idioma: Inglês

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