Crítica de filme

Crítica | Asteroid City

Publicado 1 ano atrás
Nota do(a) autor(a): 10

O cara ‘tá’ ficando muito maluco. Depois de Ilha de Cachorros, seu segundo filme animado em stop-motion, Wes Anderson entrou numa pira autofágica que conseguiu, mesmo dentro de uma brilhante carreira, trazer o melhor de si.

A Crônica Francesa, de 2021, já incorporava essa ideia de exposição do método, aliado à fisicalidade dos mundos de Anderson. O mergulho do jornal (inspirada no The New Yorker) nas suas melhores histórias atua como fio condutor, mas a encenação dessas é onde realmente está todo o valor do estilo do diretor. A cena que resume isso é o primeiro contato com o Café Le Sans Blague, local no qual os jovens se reúnem para bolar uma revolução. Enquanto a câmera se aproxima, a parede frontal é deslizada lateralmente revelando o interior, sem esconder quem a empurra, sem esconder os trilhos que a conduzem. 

E, com esse espírito, chegamos ao seu novo filme, Asteroid City, que é essa ideia elevada à nonagésima potência. Aqui há vários elementos textuais recorrentes na filmografia do diretor: famílias débeis, crianças, artistas, realidades dentro de outras. Há elementos recorrentes da história do cinema americano, como aliens, convenções e luto. Mas, o importante não é a mera existência destes elementos na obra, e sim a disposição deles. 

A escolha por uma ambientação cinquentista retrofuturista não é coincidência nem com este momento da carreira de Anderson e nem com a atual condição do cinema americano. A aclimação nesse recorte temporal predispõe uma materialidade que vai se encaixar com a ideia artística de Wes. Seu mundo é tátil, tem peso, toque, trilhos, roldanas e rodinhas. 

A história das crianças que são geniais inventores no meio do século une um visual clássico americano com pitadas de vanguardismo material. Os cactos e as rochas que decoram o fundo da ensolarada cidade trazem, ao mesmo tempo, a sensação de artificialidade cênica da peça que presenciamos, mas, ao mesmo tempo, uma tangibilidade que tem faltado nos lançamentos de grandes circuitos audiovisuais.

Anderson está interessado nas entranhas do processo cinematográfico, e o expõe utilizando outra arte, o teatro. O filme é, na verdade, uma peça, apresentada por uma TV. O teatro, “pai” do cinema e a TV, sua “filha”. Com esses elementos, a obra funciona de forma metalinguística. Por mais que, graças ao estilo idiossincrático de Wes, esses mecanismos específicos saltem aos olhos, o filme não é simplesmente um belo plano estático. 

Todo esse acúmulo de imagens da filmografia do diretor, e, também, de um imaginário boomer americano, acompanhado do medo de invasão alienígena, não funciona apenas como um comentário nostálgico (que Hollywood viu ser bizarramente lucrativo nos últimos anos), mas como esse ponto no qual Anderson vai se empanturrar de seu próprio método. 

Sua simetria, seu humor seco e seu pensar artesanal costuram todas as ambiciosas ferramentas que ele dispõe em tela. O militar rígido que superestrutura sua fala; o ET em stop-motion, a criança que pede que todos duvidem de sua futura ação. O funcionamento em uníssono de todas as mais amplas técnicas cinematográficas gera um resultado impressionante por ser, ao mesmo tempo, coeso e maximalista. 

Mesmo dentro de uma lógica mundo-dentro-de-outro-mundo, o drama a que somos submetidos em Asteroid City funciona mesmo que as personagens aparentem ser bonecos nas mãos do diretor. A família que perdera a mãe e não sabe e a mãe que não tem tempo de ser mãe, são dois exemplos que se desenrolam de forma incrível, muito graças aos grandes atores que tocam o projeto (Jason Schwartzman como o recém viúvo e Scarlett Johansson como a estrela que não sabe ser mãe), mas também ao texto de Anderson que subverte o fechamento dessas histórias com a maturidade das crianças envolvidas. Como já acontecera em Moonrise Kingdom, os infantes adultos que trilham uma trajetória rígida para diferenciar-se de seus pais. O jogo do velho e do novo como uma escapatória de um para o outro.

O enorme alcance de técnicas, cores, tons, aspect ratios, corpos, idades, espaços, dramas e piadas vêm para reafirmar Anderson como um dos autores mais ímpares da atualidade mas, também, expandir sua já cultuada e diversa iconografia. Não é diretamente um filme sobre fazer filmes, mas é uma obra que se satisfaz com o poder da criação, incorporando-o em cada centímetro de si. Atores, fotógrafos, escritores e inventores se revoltam contra o estado e se libertam da quarentena. Mesmo que seja apenas o segundo filme de uma nova era em sua carreira, é preciso salientar que o Wes Anderson do Novo Testamento é sua melhor versão. 

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asteroid city poster
País: EUA
Direção: Wes Anderson
Roteiro: Wes Anderson, Roman Coppola
Idioma: Inglês

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