Denis Villeneuve hoje tem uma condição quase que exclusiva em Hollywood. Pode escolher qualquer projeto e qualquer pessoa para trabalhar com ele. Numa lógica industrial, que produz obras caríssimas que precisam retornar o dinheiro investido, Denis virou o “autor” de blockbuster com mais créditos dos últimos anos.
Isso lhe permite ter um elenco bizarramente estelar de atores autossuficientes e uma equipe técnica com profissionais que não só executam ideias centrais, mas sempre propõem e compõem a partir de suas identidades.
Tendo isso em mente, chegamos a Duna: Parte Dois, a continuação do aclamado épico espacial de 2021. É estranho pensar que não foram produções feitas uma atrás da outra e que possuem uma distância de três anos entre os filmes, já que possuem questões parecidas, positiva e negativamente.
Um grande problema do primeiro filme é um ritmo completamente descerebrado. Villeneuve parece não saber quando acelerar e quando reduzir, assim, essas ações parecem funcionar em blocos que são alocados um na frente do outro, como se tivessem tamanhos e alturas distintas. É um filme muito assimétrico ritmicamente. Eu particularmente nunca li o livro, mas a partir de comentários sobre a fidelidade ao material original, acredito que o filme tenta ilustrar os acontecimentos numa sequência literária e acaba imprimindo esse pace esquisito.
Duna: Parte Dois possui questões parecidíssimas. Apesar de se tratar da parte final do livro, na qual resoluções vão se dando com mais frequência, o encaixe das sequências não flui cinematicamente e as cenas de ação de ambos deixam a desejar.
Por mais que não seja o foco do filme, ser de ação, momentos muito relevantes são mediados através de brigas. No primeiro filme, para se aliar aos Fremen, Paul (Timothée Chalamet) precisa vencer um deles num duelo mortal. Em pouquíssimo tempo ele humilha Jamis (Babs Olusanmokun) numa coreografia pouco criativa, mata-o e tudo bem, o filme segue em frente. Esse aspecto anticlimático das lutas é também presente na segunda parte. Gurney Halleck (Josh Brolin) passa o filme inteiro prenunciando um confronto contra Glossu Rabban (Dave Bautista) e, quando finalmente acontece, dura uns trinta segundos, dois golpes nada inspirados, assassinato do rival e a vida continua.
Talvez o pior caso disso seja a principal e último confronto do filme, Paul Muad’Dib vs Feyd-Rautha (Austin Butler). A batalha pelo futuro do universo conhecido é… morna. Villeneuve até tenta inserir um senso de urgência com uma facada sofrida por Paul, mas só, em seguida ele revida e assassina sem muito rodeios o vilão do filme numa luta insípida. A ação mano-a-mano do filme é sempre mínima, enxuta e pouco imaginativa em oposição à escala grandiosíssima das ações coletivas. Parece que todos os momentos premeditados, anunciados, construídos, nunca sobrevivem ao hype criado internamente. Sempre que há uma lupa em alguma sequência, há a chance dela ser decepcionante.
Os melhores momentos parecem ser sempre os periféricos, que surgem sem alarde, quase que furtivamente no filme. Após a morte de Feyd-Rautha, Paul, tomando o lugar do imperador, ordena a mão de sua filha, a princesa Irulan (Florence Pugh), para manter uma aliança durante a instauração do império Atreides. A reação de Chani (Zendaya), até então, namorada de Paul, é impagável, já que tanto ela quanto o público são pegos de surpresa com a demanda de casamento. A atuação de Zendaya aparece em um plano de no máximo dois segundos, mas a resposta imediata da personagem é uma das imagens mais orgânicas espontâneas do longa.
A relação de Chani e Paul é uma das coisas mais instigantes do filme. A admiração mútua entre eles é quase que instantânea, graças à vitória de Paul no confronto contra Jamis. Naquele momento, Chani passa a admirar Paul não pelo que ele pode ser, a figura da profecia, mas por quem ele é.
Uma vez, ao sair com um grande amigo do ensino médio que estava bem de vida, perguntei-lhe por que gostava tanto da ex, que aparentemente não havia superado. Ele, que no momento recebia um ótimo salário, tinha casa e carro próprio, disse que ela esteve com ele antes de sua ascensão econômica, do dinheiro, da capacidade de prover. Ela esteve com ele porque o amava do jeito que ele era, que se fosse pra dividir um copo de açaí de 200 ml eles o fariam, e ele valorizava isso porque agora muitas pessoas ao seu redor eram apenas interesseiras, e ela estava lá quando ele não tinha nada. É uma resposta materialista mas, dentro das condições que ele se encontrava, fazia sentido valorizar isso.
Chani ama Paul não porque ele é O Escolhido, o Kwisatz Haderach, que supostamente vai liberar o povo dela da opressão imperial. Chani o ama porque o admira como guerreiro, como parceiro de batalha, como alguém que abdicou das regalias do trono para juntar-se a ela na jihad. Em um dado momento, Chani diz que para Paul mantê-la, é só continuar sendo quem é. Ela e os Fremen mais novos, inclusive, não acreditam na profecia e não esperam que alguém de fora vá salvá-los. Quem acredita nessa particularidade são os mais antigos moradores de Arrakis, como Stilgar (Javier Bardem), que está disposto a dar sua vida para a concretização da profecia.
Por mais que Duna seja sobre política, religião, controle, aristocracia, feudos, guerras e evolução humana, e todas essas propriedades existem no filme, Villeneuve parece pouco interessado em todas esses elementos, tanto que às vezes há a sensação de que eles estão apenas dispostas na tela, e não articuladas.
O diretor se interessa mesmo pela figura messiânica de Paul e suas ascensão. A forma como filma Timothée Chalamet e Rebecca Ferguson parece sempre mais inspirada e devota. A mãe Jessica se torna visualmente outra pessoa, mais sábia, influente e imponente para acompanhar sua mudança de status dentro da nova configuração do povo de Duna, enquanto aderimos a transformação de Atreides em Muad’Dib, o trabalho de campo para espalhar a profecia, a sua concretização e a materialização do mito. Todos que são tocados por essas ideias no filme ganham vida. Stilgar emocionado a cada mínima ação de Paul, repetindo como um mantra de que é ele, ganha contornos cômicos inclusive.
E toda caracterização dos Fremen é um dos pontos altos do filme. Bebendo da fonte do islã e com várias referências árabes, das vestes ao vocabulário, essa busca pela simbologia do deserto e a ambientação conferem um aspecto místico que é potencializado pela supracitada grande equipe que acompanha Villeneuve. O trabalho de Greig Fraser, o fotógrafo, e Hans Zimmer, o músico, por vezes preenchem lacunas que a abordagem cínica de Villeneuve deixa.
Por mais que alguns momentos do filme sejam “muita mídia e pouco futebol”, o saldo de Duna: Parte Dois é positivo quando Denis Villeneuve se direciona para o caminho que lhe parece mais palatável: da criação imagética de um messias; Paul como ícone da revolução e a semente do vindouro império. Aliado a uma equipe técnica com grande capacidade de proposição estética e que entende bem o formato IMAX, Villeneuve aposta na capacidade de todos ao seu redor para construir uma experiência sensorial de grande escopo que invariavelmente se tornará um marco na cultura pop.