Nos últimos meses, o gênero body horror tem voltado à tona entre os fãs de terror. Com o lançamento de A Substância, múltiplas comparações da obra de Coralie Fargeat têm sido feitas com David Cronenberg, diretor mundialmente conhecido por seus filmes que exploram o gênero e levantam debates sobre a relação entre corpos humanos. Agora, o diretor lança seu novo trabalho, O Senhor dos Mortos, um suspense que, embora intrigue pela ideia, pouco empolga em sua condução.
Na trama, temos Karsh (Vincent Cassel), um empresário viúvo que, entre seus negócios, está o ramo funerário. Com sua controversa inovação — uma tecnologia que permite observar a decomposição de mortos em suas mortalhas — seus relacionamentos pessoais são postos à prova quando, certa noite, vários túmulos de seu cemitério são vandalizados, incluindo o de sua falecida esposa, Becca (Diane Kruger). Karsh então inicia uma investigação em busca dos culpados, enquanto lida com o luto na companhia de sua cunhada Terry (Diane Kruger).
O ponto principal a ser discutindo em primeira instância é o processo de luto e as formas diferentes em que as pessoas lidam com esse acontecimento. Há alguns anos, para a produção de um podcast, estudei mais a fundo o processo de luto, sobretudo durante a pandemia de Covid-19, quando as pessoas não tinham a possibilidade de enterrar seus entes queridos ou sequer ver com seus próprios olhos o corpo sem vida dessas pessoas, entrando no que é chamado de “luto complicado”. Aqui, o diretor oferece uma experiência inversa, em que as pessoas, sobretudo aquelas com mais poder aquisitivo, podem observar o cadáver lentamente entrando em decomposição por meio da tecnologia de monitoramento.
Essa inversão do processo natural da morte implica em uma espetacularização da imagem como forma de superação do luto, embora no filme isso não se apresente como uma solução saudável para os personagens.
Segundo o diretor em entrevistas, a inspiração para O Senhor dos Mortos surgiu após a morte de sua esposa, Carolyn Zeifman, em 2017. No filme, vemos muito sobre como o autor se coloca em cena, por meio do personagem de Vincent Cassel. A caracterização similar, com cabelos grisalhos jogados para trás, lembra algo que Pedro Almodóvar fez com seu Dor e Glória, ao lado de Antonio Banderas, que interpreta uma espécie de espelho do diretor. Contudo, aqui Cronenberg é bem menos literal ao se representar em tela.
Paralelos são traçados entre a liberdade de ambos em seus negócios para desenvolver seus produtos à sua maneira (David sendo um cineasta autoral com grande controle sobre seus filmes, e Karsh como um empresário renomado que acumula riquezas e inova com suas invenções), com uma obsessão pelo corpo humano interligando-os. É possível interpretar a criação de Karsh como algo semelhante ao próprio cinema; o monitoramento dos corpos em decomposição pode ser visto como uma forma de dispositivo cinematográfico.
Algumas reflexões sobre a possessividade do corpo alheio podem ser extraídas a partir disso. Um dos fatores, como o ciúme do personagem em relação a uma possível infidelidade de sua esposa, leva a discussões sobre se aquilo seria uma autocrítica à possessividade patriarcal sobre o corpo feminino, mesmo após a morte.
Em O Senhor dos Mortos, Cronenberg adota uma direção em “piloto automático”, apostando mais em longas cenas de diálogos, em detrimento de composições imagéticas bem elaboradas ou de choques visuais. Com exceção dos sonhos do protagonista Karsh com o corpo em decomposição de sua falecida esposa, e algumas cenas com os cadáveres no cemitério, em que o trabalho de VFX parece pouco desenvolvido, o filme não apresenta imagens tão chocantes.
A decupagem mais tradicional encontra pequenas sacadas visuais, como em longas cenas de diálogos entre Karsh e Terry, que causam incômodo pela reclusão do protagonista em relação às outras pessoas, tornando-se aos poucos mais receptivo à medida que a trama avança. As pessoas parecem não se encaixar na vida de Karsh, o que é representado visualmente em suas cenas junto a outros personagens.
No entanto, o mistério em torno da vandalização do cemitério pouco empolga na trama. É difícil criar uma conexão forte com o protagonista, e o mistério traz poucas consequências ou reviravoltas que o tornem minimamente interessante para o público. A montagem também é arrastada, com blocos longos de cenas monótonas e diálogos pouco inspirados.
Há longos planos apresentando um personagem por meio de outra tela, seja de computador ou celular, que são desinteressantes. Esse recurso é usado à exaustão pelo diretor, que, embora possa estar comentando a relação humana com as imagens e a tecnologia nos tempos atuais, torna-se cansativo e monótono devido a forma em que é realizada.
Diane Kruger interpreta três personagens: Becca, a falecida esposa do protagonista, que retorna em seus sonhos com o corpo mutilado; Terry, a irmã de Becca, que pouco a pouco cria um vínculo forte com o protagonista, sendo a que mais tem tempo de tela entre as três personagens; e Hunny, uma avatar virtual usada como assistente de Karsh. Kruger consegue apresentar três atuações bem distintas, todas ligadas pelo desejo de formas diferentes pelo protagonista.
O elenco ainda conta com Guy Pearce em um papel mais cômico, devido à paranoia de seu personagem Marty. Embora ajude a trama a avançar, ele é deixado de lado em vários momentos do filme, e seu humor não convence nas cenas em que contracena ao lado de Vincent Cassel.
Como alguém em processo de luto, Cronenberg entrega em O Senhor dos Mortos um filme mais pessoal e pé no chão, distante do body horror que marcou sua carreira. O mistério e as relações entre os personagens pouco empolgam o público, sendo um filme gelado como um cadáver, embora levante discussões interessantes sobre o luto e a relação humana com o corpo. A perspectiva sobre o corpo humano parece ser uma constante na carreira do diretor, que aparenta estar longe de esgotar as possibilidades desse tema.