Crítica de filme

Enterre Seus Mortos

Publicado 3 semanas atrás
Nota do(a) autor(a): 4

Com a missão de se consolidar como um dos grandes nomes do cinema de gênero no Brasil, o diretor Marco Dutra lança seu novo filme, Enterre Seus Mortos, em que mistura diferentes gêneros do terror em uma distopia apocalíptica e angustiante.

Baseado no livro da autora Ana Paula Maia, a adaptação cria um universo ainda mais devastado, onde a rotina dos personagens é ambientada por chuvas de carcaças de animais, uma epidemia que atinge crianças conhecida como “A Síndrome”, uma nova seita religiosa que toma o lugar do cristianismo e, claro, a morte, que está constantemente presente na vida dos personagens. Não é à toa que o filme leva o subtítulo Fábula do Apocalipse em 7 Capítulos.

Na trama, situada na pequena e fictícia cidade de Abalurdes, Edgar Wilson (Selton Mello) trabalha como recolhedor de animais mortos nas estradas para mantê-las funcionando. Junto dele, estão o colega de profissão Tomás (Danilo Grangheia), um ex-padre excomungado que distribui extrema-unção aos corpos mutilados que cruzam seu caminho, e sua chefe Nete (Marjorie Estiano) — com quem Edgar tem um relacionamento e um desejo de fugir de Abalurdes. Ao redor deles, o mundo parece dar sinais de que um arrebatamento final se aproxima.

Diferente dos trabalhos anteriores do diretor, como Trabalhar Cansa e As Boas Maneiras (codirigido por Juliana Rojas), Enterre Seus Mortos está interessado em discutir temas presentes na realidade brasileira, como o fanatismo religioso e a alienação do trabalho, de forma extrema em um futuro devastado, enquanto os filmes anteriores utilizavam da fantasia em graus menores inseridos no presente de forma um pouco mais sutil. Essa decisão implicou em uma construção de mundo trabalhada, cheia de efeitos especiais — muito bem trabalhados por sinal — e locações dignas de uma distopia ao estilo Logan e Mad Max. Os ambientes tem uma textura desconfortável, e o espectador consegue sentir a poeira e o cheiro dos cadáveres em decomposição.

Com uma rotina lidando com corpos mutilados na estrada, Selton Mello interpreta Edgar Wilson, um homem desconectado de seu universo. Seu trabalho removendo cadáveres de animais nas estradas o torna indiferente às imagens grotescas desses corpos mutilados. Ele é frio e, ao menos nos primeiros capítulos, não demonstra emoção ou conexões com as pessoas ao seu redor.

Esse pragmatismo regrado traz momentos desconfortantes, como na cena inicial que envolve um acidente de carro com um cavalo e a fala “Isso não faz parte do trabalho”, que retorna em um contexto mais macabro na metade do filme. Outro ponto interessante sobre a construção do personagem são seus sonhos ligados a seus pais e a aparição misteriosa de uma criança, que atormenta o personagem.

Sua relação com Nete e Tomás mostra outros lados ao personagem, como a fuga para o pragmatismo e a revelação sentimentos que acabam contrastando bem com sua personalidade. Enquanto Edgar executa as tarefas de forma fria, Tomás tenta trazer conforto por meio da unção religiosa. Enquanto Edgar se apresenta cético à nova religião do filme, Nete aos poucos se interessa por ela por meio da influência de sua Tia Helena (Betty Faria).

Durante os sete capítulos de Enterre Seus Mortos, o longa mescla e transita entre diferentes gêneros narrativos, como o faroeste, o road movie e a ficção científica, enquanto utiliza elementos de contos de possessão, serial killers, gore, seitas, dentre outros. Há muito controle entre esses saltos de gêneros e na divisão de atos, embora alguns temas acabem servindo mais como construção de universo do que artifício para a movimentação da trama dos personagens.

Um exemplo está na epidemia e em todos os elementos que rondam as crianças deste universo, em um estado de “zumbis” isoladas em uma ilha. As cenas do noticiário criam uma expectativa de que algum dos capítulos explorará esse elemento mais a fundo, mas ao final está ali como mais uma das pragas apocalípticas deste universo. O excesso de ideias acaba inchando o meio do filme, que volta a ter mais fôlego quando se inicia o segmento de road movie dos personagens indo para a cidade Capital.

A relação com a religião no filme acaba se tornando um dos temas mais explorados, tanto com a seita apresentada e o desenrolar da história da personagem Nete, brilhantemente interpretada por Marjorie Estiano, quanto com as contradições do personagem Tomás e toda a relação de ser um ex-padre alcoólatra que tenta manter sua fé em um mundo sem esperanças. O destaque desse personagem traz algumas das melhores cenas e falas do filme, como “Deus está vivo, e ele quer matar”. Seu capítulo final marcará o imaginário do público, com uma alusão ao mito de Sísifo ainda mais desoladora.

Enterre Seus Mortos é um filme brutal e sem esperança. Constrói uma das distopias brasileiras mais interessantes do gênero de horror, que deixaria Zé do Caixão orgulhoso por seu gore e suas críticas a seitas religiosas. Embora em certos momentos acabe ficando inchado pelo excesso de ideias, consegue causar inquietude e angústia no espectador. Marco Dutra aqui se consolida como um dos maiores nomes do cinema de gênero brasileiro.

Compartilhar
Enterre seus Mortos Poster

Enterre Seus Mortos

Enterre Seus Mortos
País: Brasil
Direção: Marco Dutra
Roteiro: Marco Dutra, Ana Paula Maia
Idioma: Português

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *