Lispectorante é um filme brasileiro dirigido por Renata Pinheiro e lançado em 2017. Exibe de forma poética a jornada de uma mulher (Glória, interpretada por Marcélia Cartaxo). Esta, de meia-idade e em crise, volta ao centro decadente da cidade do Recife, em busca de novos rumos para sua vida. Inspirado nas obras de Clarice Lispector, o filme estreou nos cinemas no dia 08/05.
Embora não se baseie em nenhuma obra específica da autora, o filme parte de um princípio interessante — revelado pela imprensa durante sua exibição nos circuitos de premiação — que afirma que sua inspiração vem do estado deplorável da casa onde Clarice viveu durante a infância e adolescência.

Quando Eu Me Encontrar percorre a vida de personagens que tem sua vida mudada quando Daniele sai da sua casa sem avisar para onde foi.
Seguindo uma tradição estilística das minhas críticas, peço permissão para fazer uma comparação singular, que à primeira vista pode parecer pouco relacionada à obra. No caso, pensemos na obra Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo. Esta, que mais tarde ganharia o nome de O Corcunda de Notre-Dame, originalmente não era uma fábula sobre a beleza interior centrada na figura de Quasímodo. Victor Hugo escreveu o livro como um romance histórico que retrata diversas personagens típicas da Paris medieval.
Em Lispectorante, o objetivo é o mesmo que em Notre-Dame de Paris: denunciar o abandono de um patrimônio simbólico. O autor concebeu a obra francesa como uma denúncia ao estado de conservação da catedral na época de seu lançamento. O filme nacional tem como objetivo escancarar o abandono não apenas da antiga casa de Clarice Lispector, mas do centro histórico do Recife como um todo. Assim como, em Hugo, vemos a fábula de um homem deformado fisicamente que se une a uma igreja igualmente disforme, em Lispectorante temos uma mulher deformada espiritualmente tentando se encontrar em meio às ruínas de uma decadente Recife pós-pandemia.
Por isso, a abordagem do filme tenta escapar de referências diretas a uma ou outra obra de Clarice Lispector. A abordagem evoca uma atmosfera geral de sua literatura. Essa “sensação de Lispector” é transmitida com ares de psicodelia (sugeridos já no título, que funde Lispector com expectorante). A visão psicodélica é similar a de seu contemporâneo Girassol Vermelho. Porém, diferentemente da obra mineira, o filme pernambucano não se aprofunda na distopia, mas nos lembra que a realidade, por si só — diante do descaso do poder público e da sociedade com mulheres maduras e com o patrimônio histórico — pode ser solitária e vazia.
As imagens, lindamente reforçadas por cores vivas e uma iluminação dinâmica, têm uma força visual impressionante. O grande trunfo de Lispectorante é, de fato, nos transportar para dentro dos problemas que o filme tenta denunciar. As tomadas dentro e fora dos escombros para onde Glória se desloca, vez ou outra, em meio à sua crise existencial, são vibrantes e poéticas.
Nos diálogos residem as maiores referências à obra lispectoriana, com falas que remetem a livros como Laços de Família e A Hora da Estrela. A escolha de Cartaxo para interpretar a protagonista é uma referência direta à adaptação cinematográfica deste último (lançada em 1985 e que lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim).
Entretanto, a escolha do estilo de atuação de Cartaxo no filme é bastante questionável e compromete a imersão nos conflitos da protagonista. Digo que é uma escolha intencional, pois Glória é muito parecida com Macabéa, seja no jeito de falar, nos modos ou nas expressões. Mas isso não combina com uma mulher vivida, ainda que emocionalmente abalada. Não é crível que ela aja como a inocente, iludida e simplória protagonista de A Hora da Estrela.
Essa incompatibilidade entre a história de vida da personagem e sua postura transmite a incômoda sensação de que as atuações estão fora de tom. Atribuo essa responsabilidade à direção, uma vez que conhecemos o talento de Cartaxo. Sabemos que a uma atriz paraíbana não é uma profissional de um papel só, como se vê em Madame Satã (dirigido por Karim Aïnouz e lançado em 2002). No clássico brasileiro, sua personagem, ironicamente, também é uma mulher vivida num centro urbano decadente.
Se o espectador conseguir relevar esse ponto negativo, encontrará em Lispectorante um filme que merece ser assistido por fãs do cinema brasileiro, por mulheres, por defensores do patrimônio histórico e, sobretudo, por quem já sentiu em sua alma o toque singular das palavras de Clarice.