– Alerta de spoiler –
Há algum tempo que boa parte (e quem sabe a maioria) das obras cinematográficas não podem ser classificadas como um único gênero. O filme ou a série transcende a sua própria classe e assume roupagens de outras categorias. É o que acontece com A Maldição da Mansão Bly, classificada como terror, mas que também usa de várias das características do romance.
Assim, pode parecer estranho que dois gêneros, aparentemente tão distintos um do outro, possam conviver juntos, mas é exatamente isso o que sucede nessa nova obra da Netflix. O criador Mike Flanagan já declarou em entrevista que “cada história de amor é uma história de fantasmas”, mas ele não precisava ser tão literal – seu pensamento está estampado em sua produção.
A Maldição da Mansão Bly não é exatamente uma continuação de sua antecessora, A Maldição da Residência Hill que, devido ao sucesso que obteve, tornou-se uma antologia.
Sendo assim, as séries compartilham o mesmo criador e vários atores, mas suas narrativas são totalmente independentes. A Residência Hill (também excelente), possui uma pegada mais clássica do terror, com alguns sustos, seres assustadores e gritos. Já Mansão Bly é mais suave em todos os sentidos, inclusive no que diz respeito às cores e à atmosfera em geral. O vermelho, tão importante na primeira temporada (haja vista a Sala Vermelha), agora só possui ecos na segunda, em que predominam o verde e o azul. A iluminação mais clara e arejada também dão um tom mais amigável à personagem principal (a mansão Bly), apesar de ainda remeter à uma casa mal-assombrada.
Além disso, os fantasmas de uma temporada e outra são completamente diferentes. Se Residência Hill falava de luto e trauma familiar, Mansão Bly fala de amor. Naquela, portanto, havia algo de coletivo, algo com que todos os membros da família Hill tinham que lidar, como por exemplo, o fato de Luke (Oliver Jackson-Cohen) ser viciado em drogas. Já nessa, a coisa fica mais pessoal, e cada personagem carrega seu próprio fantasma.
Assim, Victoria Pedretti, destaque na primeira temporada como Nell Crain, retorna na segunda como a doce Dani Clayton, uma americana que viaja até a Inglaterra para assumir o cargo de au pair na mansão dos Wingrave. De visual diferente (até para deixar claro que a atriz não estava voltando ao papel anterior), Pedretti continua esbanjando talento, apesar de Dani não ter exigido tanto dela quanto Nell (como eu disse, tudo agora está mais suave do que antes). Seu fantasma é o ex-namorado, que a assombra desde que morreu atropelado momentos depois de ela ter rompido o relacionamento dos dois. Quem Edmund (Roby Attal) representa? A culpa da qual a moça não conseguia se livrar.
Sendo assim, é possível fazer uma análise dos medos de todos os outros moradores da fatídica mansão. O do chef Owen (Rahul Kohli) é sua mãe, que representa sua frustração profissional – nativo de Bly, ele teve que deixar Paris para cuidar da progenitora doente, o que o prendeu no local. O da governanta Hannah (T’Nia Miller), é o próprio Owen, já que ela nunca confessou o que sentia por ele. E o da jardineira Jamie (Amelia Eve), é sua infância triste, marcada por um pai ausente e uma mãe injustiçada. Cada qual com suas questões, cada um com seus fantasmas.
Porém, se Pedretti foi o destaque em Residência Hill, em Mansão Bly quem se destaca são as crianças. Flora (Amelie Bea Smith) e Miles (Benjamin Evan Ainsworth) são os órfãos ricos de quem Dani vai cuidar e também o maior desafio de sua vida. Smith e Ainsworth estão tão maduros em suas atuações quanto qualquer adulto e talvez suas expressões despertem mais medo nos espectadores do que a grande vilã da trama, a Dama do Lago, Viola, interpretada pela excelente Kate Siegel, outra que também estava no elenco da primeira temporada interpretando Theodora Crain. Até as crianças, com tão pouco passado e um futuro inteiro pela frente, têm seus fantasmas, representados nos pais que eles perderam, ainda tão novos, em um acidente.
Dessa forma, o medo e o terror em Mansão Bly está muito mais no interior das pessoas do que em monstros ou sustos. Ora! Mulheres, homens e crianças sem rosto podem sim ser uma visão assustadora, mas não tanto quanto a Mulher do Pescoço Quebrado ou o Quarto Vermelho em Residência Hill.
É por isso que é um horror diferente, mais psicológico do que material. É um horror com o qual até conseguimos nos compadecer, à medida que vamos avançando na história e conhecendo as minúcias por trás dele. Um horror que reside nos momentos que escolhemos reviver de novo e de novo, como mostram os loops temporais tão bem inseridos e trabalhados pelo criador da série. Um horror que mora nas pessoas com quem escolhemos conviver, como retratado pelo relacionamento de Rebecca (Tahirah Sharif) e Peter, que parece tão certo, mas é tão errado. E ademais, movidos pela incrível interpretação de Siegel, somos levados a reconhecer a Dama do Lago como uma vilã singular, e não como um monstro qualquer.
É por essas e outras que me descobri fã de Flanagan e de sua capacidade de lidar com essas questões terríficas. Não é à toa que gostei tanto de sua versão cinematográfica de Doutor Sono (Doctor Sleep, 2019), obra de Stephen King, autor de quem é amigo e que admira muito. E é por isso que já estou tão ansiosa por sua próxima obra, Midnight Mass, que será lançada também na Netflix, até então sem data de estreia marcada.
Ainda é difícil entender como dois gêneros tão diferentes podem ter tanta simbiose, mas com A Maldição da Mansão Bly, Flanagan mostra que isso não só é possível, como também terror e romance não são opostos. Como diz a Jamie mais velha na série, horror, amor… no final, é tudo a mesma coisa.
Respostas de 2
A melhor matéria que li até agora sobre a série. Conteúdo autoral, demonstra análise técnica, opinião pessoal da autora, curiosidades. Muito interessante e bem escrita.
O resto dos resultados que o Google vai trazer? Leia apenas o primeiro. Os outros 30 são meras cópias em layouts diferentes.
Muito obrigada, Cris! 😉
Fico muito feliz que tenha gostado!