Nada que você está prestes a ver é verdade
Contrário à maioria das biografias cinematográficas, essas são as palavras que abrem A Verdadeira História de Ned Kelly, o mais novo longa baseado na história do fora da lei australiano e de sua gangue. Visto como um ser mitológico em sua terra natal, um mártir contra a opressão da colônia britânica na ainda jovem Austrália, sua história não é tão conhecida por aqui salvo por outras produções que adaptaram sua vida – as mais conhecidas tem atores como Mick Jagger e Heath Ledger no papel do “Robin Hood” australiano. A nova oportunidade de conhecer essa figura histórica vem pelas mãos do diretor Justin Kurzel, de Macbeth (2015) e Assassin’s Creed.
Contudo, como visto em sua epígrafe, A Verdadeira História de Ned Kelly joga às favas qualquer comprometimento com a acuidade histórica dos fatos, muito mais interessado em mergulhar na figura de Kelly em suas próprias palavras. Narrado por ele mesmo, o filme é dividido em duas grandes partes (Menino e Homem) e uma terceira mais curta que fecha o longa. Na primeira, vemos a infância pobre de Kelly (interpretado com talento por Orlando Schwerdt) e suas interações com aqueles que irão formar o homem Ned Kelly: o capitão O’Neil (Charlie Hunnam), o criminoso Harry Power (Russell Crowe em ótima participação) e sua mãe Ellen (Essie Davis). Kurzel aborda essa primeira fase da vida de Kelly de maneira mais clássica, com belos planos abertos mostrando todo o isolamento de sua família e a vegetação rasteira ao redor de sua casa, evidenciando a pobreza do lugar.
Já na segunda parte, a abordagem muda completamente, como se Kurzel engatasse uma terceira ou quarta marcha e não tirasse mais o pé do acelerador. Adotando uma estética punk dos anos 80 (sua gangue parece mais uma versão criminosa dos Sex Pistols) para mostrá-lo como uma figura inquieta e revolucionária, o Ned Kelly adulto (em uma atuação hipnótica de George MacKay, de 1917) é uma pessoa que por mais que demonstre um mínimo de cuidado em suas ações – como por exemplo desenvolver uma armadura a prova de balas para ele e seus companheiros -, não deixa de ser impulsivo e em certos momentos até bestial, grunhindo e batendo a cabeça na mesa. Essa decisão reflete até na escolha de sua trilha sonora, com muito rock e até duas composições do grupo de atores que forma o bando de Ned Kelly. No entanto, essa mudança no tom do filme, por mais dinâmica e visualmente estimulante que seja, acaba por desorientar o espectador, que vai encontrar dificuldade em encontrar sentido em algumas sequências e decisões dos personagens. O romance de Kelly com Mary Hearn (Thomasin McKenzie, de Jojo Rabbit) e o eventual filho que esta gera não passa como justificativa para a carta que escreve e que acaba sendo o fio narrativo do longa.
A liberdade que Kurzel toma com a história do famoso bandido funciona melhor com aqueles que já conhecem seus feitos. Até suas tentativas de tratar de temas mais delicados, como a opção do bando de se travestir durante suas ações, apontando para uma possível homossexualidade da figura histórica, é jogada por terra em uma explicação rasa de que “as pessoas não sabem lidar com loucos”. No final das contas, a desconstrução da mitologia proposta pelo filme acaba ficando mais na abordagem do que nas ideias.
No fim das contas, A Verdadeira História de Ned Kelly é uma experiência visualmente incrível, mas que peca em não se aprofundar nos temas que propõe. Seu Ned Kelly termina a jornada mais misterioso do que começou. Uma não-biografia.