Clássicos

Garrincha: Estrela Solitária

Publicado 2 meses atrás
Nota do(a) autor(a): 2.5

Um dos maiores defeitos do cinema de ficção brasileiro é o número reduzido de produções sobre o esporte mais popular do país. Tudo estaria bem, caso esse esporte não fosse responsável por grandes histórias pessoais e coletivas que habitam o imaginário popular. Por exemplo, é bizarro pensar que Pelé, o maior atleta brasileiro desse esporte, ganhou um filme estadunidense sobre sua vida, mas até hoje não há previsão para uma cinebiografia ficcional feita no Brasil. Porém, para aquele que é tido como o segundo maior, em 2003, alguém produziu um filme chamado Garrincha – Estrela Solitária.

O filme de Milton Alencar (do suspense de ficção científica de 1981, Fruto do Amor), roteirizado por Ruy Castro, Rodrigo Campos e Aldir Blanc, pretende contar a história do “anjo das pernas tortas”, jogador icônico da seleção bicampeã mundial de futebol entre 1958-1962. O uso da palavra “pretende” visa representar uma intenção que, receio, não logrou completamente êxito no produto final. Mas vejamos o porquê.

Escolhi falar deste filme como clássico devido ao recorte temporal, já que na próxima semana completa 45 anos. Antes de analisar a obra, vale comentar o tema escolhido para contar a história de Garrincha – Estrela Solitária. O carnaval carioca de 1980. Este foi um desastre completo para a tradicional escola de samba Estação Primeira de Mangueira.

A escola passava por um período de reformulação após o último título do carnaval, conquistado sete anos antes. Com novas carnavalescas e um enredo chamado Coisas Nossas, que pretendia falar sobre elementos da cultura brasileira, o desfile não empolgou. Com um samba-enredo difuso e esquisito que mencionava até a Petrobras, a escola se perdeu. Não bastasse isso, a quantidade exagerada de membros no desfile tornou-o uma bagunça (vale lembrar que, em 1980, ainda não existia o sambódromo). A escola fez um desfile apressado, que quase estourou os 70 minutos permitidos pelas regras.

Para piorar, foi um desfile apagado para uma das suas maiores estrelas, a porta-bandeira Neide. A segunda porta-bandeira, Mocinha, eclipsou-a, pois, em segredo, Neide lutava contra um câncer no útero, o que afetava sua performance e a vitimaria no ano seguinte. Resultado: a escola flertou com o rebaixamento, terminando em 8º entre as 10 escolas do grupo especial daquele ano.

E mesmo com toda essa desgraça, a cereja do bolo amargo foi a participação especial de Garrincha. Após sua última partida oficial em 1972, o “anjo das pernas tortas” viveu afastado dos holofotes. Convivendo com problemas decorrentes de seu conhecido alcoolismo, o ex-atleta participou do desfile apenas três dias após deixar o hospital.

Ainda se adaptando à nova medicação e proibido de beber, Garrincha mais parecia um morto-vivo na avenida. Perdido, sentado em um carro alegórico, acenava de forma letárgica para o público, que, assustado, assistia à decadência daquele que fora conhecido como a “alegria do povo” (é possível ler mais sobre esse ocorrido e suas consequências no excelente texto de Fábio Areias para o site Ludopédio).

É desse momento caótico que o enredo do filme começa a ser desenvolvido. Um dopado Garrincha (André Gonçalves) sai de sua casa, onde vive com sua esposa (Marília Pêra), acompanhado por seu amigo, o famoso cronista Sandro Moreyra (Henrique Pires), em direção à Rua Marquês de Sapucaí. Em meio ao seu transe, ele relembra toda sua vida, do início de sua carreira em Pau Grande – RJ, até seu melancólico afastamento dos gramados.

Por si só, essa é uma abordagem interessante, inclusive utilizada por outro filme que retrata um ídolo boêmio e botafoguense: Heleno (2011, dirigido por José Henrique Fonseca). Porém, a forma como fazem isso não ajuda muito na montagem. Por partir de um transe intimista do ex-jogador, esperava-se que sua perspectiva dos fatos fosse privilegiada. Isso acontece apenas algumas vezes. Logo que começa o desfile, nos deparamos com uma atônita e preocupada Iraci (Ana Couto).

A partir daí, muito da história do craque, apesar de narrada por André Gonçalves, parece ser fruto da visão de sua primeira esposa. As longas tomadas de sexo, com fade-ins e fade-outs desnecessários nos corpos nus dos atores (o que desperta uma grande vontade de pular os intermináveis ‘ralas-e-rolas’), reforçam a valorização do lado mulherengo do personagem.

Ok, também é justo, afinal, a boemia de fato foi algo importante na vida de Garrincha. Mas, em 15 minutos de tela, vemos o craque tendo sua história dividida por duas esposas (três, se contarmos a personagem de Roberta Rodrigues, que também participa de uma longuíssima cena de sexo).

Quem conhece a história do jogador pode pensar que a escolha de privilegiar as mulheres em sua vida se deve à importância futura de Elza Soares. Eu mesmo pensei isso, já que o pôster do filme traz a diva Taís Araújo como a cantora. No entanto, quando Iraci desaparece (após ocupar metade da fita ao lado de Garrincha) da trama para dar lugar a Elza, ela pouco contribui para a história, apesar do filme afirmar que o romance ‘que enfrentou o preconceito e a intolerância’ seria um destaque.

Então temos um problema aqui: Garrincha conta apenas parcialmente sua história, as mulheres que ocupam grande parte do tempo de tela contam muito superficialmente, então quem o faz? Seus amigos? Temos um Sandro Moreyra que vive como papagaio de pirata, mas não faz muito, e um Nilton Santos (Alexandre Schumacher) que até assume uma posição de irmão mais velho do jogador, mas desaparece em certo ponto e só reaparece quase que de relance na cena do carnaval.

Apesar de ser linear, não sabemos por quem está sendo contada essa história. Isso acrescenta um caráter lendário aos eventos, mas retira a autonomia do protagonista e questiona o aspecto biográfico da obra. Por exemplo, muita gente considerou a influência de Elza Soares, que tentou afastar o ídolo botafoguense da bebida, como negativa. Hoje sabemos que muito de sua má fama se deu justamente por tentar ajudar seu marido e afastá-lo das más companhias. A perspectiva escolhida pelo filme não é nem uma, nem outra. Se a visão fosse de Elza, ela escolheria a segunda opção; já a de Garrincha, dificilmente diminuiria os esforços de seu grande amor.

Outro grande problema é a falta de futebol no filme. Apesar de ter excelentes cenas retiradas do clássico documentário Garrincha, Alegria do Povo (1962, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade) e do Canal 100, pouquíssimos dos grandes jogos da carreira do craque são mostrados. Isso acaba reforçando a perspectiva de que Garrincha pouco jogou e muito bebeu, o que, mais uma vez, para o problema narrativo citado, é confuso. Garrincha falaria de si tão mal assim?

Em certo momento, convocam-no para a Copa de 1958, mas não vemos nenhuma cena dele por lá. O máximo que sabemos disso é por uma sequência de Iraci ouvindo as partidas pelo rádio e, voilà! Garrincha aparece bêbado em casa, vestindo a faixa de campeão mundial e louco para transar lentamente com sua esposa.

Fora esses problemas, o grande trunfo da obra é fazer uma reconstrução histórica acurada de como a imprensa e a sociedade funcionavam na época, trazendo crônicas bem interessantes, como a confusão que o apelido Garrincha causou na imprensa (caso contado pelo genial Andrey Raychtock, no canal Por Onde Andrey). A ambientação é sensacional, conseguindo nos transportar pelas diversas fases da vida do icônico jogador.

O elenco está perfeitamente encaixado em seus papéis, e a caracterização de Gonçalves e Araújo, como Garrincha e Elza, está maravilhosa. Naturalmente, um elenco tão talentoso não decepcionaria, e realmente não deixou a desejar em sua entrega e evolução ao longo dos anos retratados pela obra. Grandes atores e personagens, em uma ambientação muito cuidadosa, fazem desse encontro um filme que merece ser redescoberto. Redescoberto, uma vez que, talvez pela sua fotografia de minissérie, tenha se afastado dos holofotes do público ao longo dos anos.

Para quem deseja conhecer mais sobre esse personagem, é possível – com ressalvas, claro – fazer uma sessão dupla com o documentário de Joaquim Pedro de Andrade. Por enquanto, é o máximo que podemos fazer, enquanto torcemos para que mais filmes sobre futebol e seus craques sejam campeões e protagonistas nos cinemas nacionais.

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garrincha estrela solitaria poster

Garrincha – Estrela Solitária

Garrincha – Estrela Solitária

País: Brasil

Diretor(a): Milton Alencar

Roteirista(s): Ruy Castro, Rodrigo Campos, Aldir Blanc

Elenco: André Gonçalves, Ana Couto, Taís Araújo, Henrique Pires

Idioma: Português

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