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Nha Fala

Publicado 2 dias atrás
Nota do(a) autor(a): 4

Quão importantes são as tradições para nós? E mais: qual o valor de quebrá-las ou contorná-las? Embora essas questões possam parecer simples, elas são centrais para o entendimento de Nha Fala, uma comédia musical franco-portuguesa dirigida pelo cineasta bissau-guineense Flora Gomes e lançada em 2002.

O filme conta a história de Vita (Fatou N’Diaye), uma jovem de Cabo Verde (originalmente, ela seria Bissau-guineense, mas o filme foi ambientado na Cidade da Praia devido aos reflexos ainda visíveis da guerra civil em Guiné-Bissau, que ocorreu entre 1998 e 1999). A jovem está se mudando para Paris para estudar. Cheia de sonhos e, talvez, um pouco iludida com suas próprias expectativas, ela parte para a Europa. No entanto, recebe um aviso importante de sua mãe (Bia Gomes): em sua família existe uma maldição. Se uma mulher cantar, ela morre.

A partir daí, surge um desafio interessante. Isso, tanto para o filme quanto para nós, espectadores: como fazer um musical em que a protagonista não pode cantar? Isso não impede, no entanto, que outros personagens embarquem em números musicais divertidos. As músicas, cantadas em Crioulo da Guiné-Bissau, embalam situações engraçadas e ficam facilmente na memória do público.

No entanto, Nha Fala apresenta um ritmo um tanto arrastado na primeira parte. Possivelmente foi influenciado demais por musicais clássicos de Hollywood, como Hair (é possível perceber até a mesma fórmula, um pouco difícil de digerir, de muita cantoria e pouca ação, semelhante à de Emília Perez ou outros musicais da mesma linha). Não é incomum assistir à primeira parte e desejar que Vita logo embarque para a França.

Entretanto, essa primeira parte, se observada com atenção, oferece uma gama de personagens que se desenvolvem bem na trama. A evolução ocorre mesmo quando estão fora de cena, após a protagonista deixar sua terra natal. Esses tipos são formados por arquétipos simples, mas eficazes, que conseguem transmitir uma sensação de proximidade. Apesar da distância entre a Praia, capital de Cabo Verde, e o Brasil, foi possível identificar diversos tipos semelhantes aos de meu próprio bairro.

Por exemplo, temos o ganancioso comerciante local Yano (Ângelo Torres), mulherengo, mas apaixonado por Vita. Outro destaque é o “louco” da cidade (Jorge Biague). Também temos o padre tradicionalista, que questiona as tradições locais; o “papa defunto” da região e outros personagens. Grandes obras cômicas se aproveitam desses estereótipos, que, embora simples, transmitem uma gama de sentimentos de forma eficaz.

Assim que Vita parte para a França, o desenvolvimento do filme melhora, embora outros personagens contem grande parte de sua história, especialmente a história de amor, por meio de números musicais.. Esse é um ponto triste, pois uma obra que parecia tão preocupada em mostrar, opta por apenas contar (ou, no caso, cantar) algo essencial para o desenvolvimento da trama.

De qualquer forma, sabemos que Vita está namorando Pierre (Jean-Christophe Dollé), um músico e produtor francês, branco, que busca uma voz para seus projetos de composição no estúdio onde trabalha. Após uma cena de sexo (muito contida e bonita, diga-se de passagem), Pierre flagra Vita cantando, e ela revela a maldição de sua família.

A partir desse ponto, o filme realmente começa a mostrar seu potencial. Vita, embora não acredite na maldição, começa a viver como se estivesse prestes a encontrar o fim. A protagonista de Nha Fala, ao mesmo tempo, tem que lidar com uma carreira de sucesso. Vive também com a realidade de encarar as tradições de seu povo e seu vínculo com a morte.

Desde o início, entendemos que a tradição abordada pelo filme é a própria morte. Na realidade de Bissau, é uma presença constante e trágica (e que, inclusive, dificultou o desenvolvimento das filmagens). Quebrar essa tradição da morte, da violência e da pobreza é uma perspectiva interessante que o filme nos apresenta, culminando em um final divertido e surpreendente.

Porém, sem apresentar isso de forma contraditória, o filme mostra que é possível retomar a tradição da independência econômica e social. Em Nha Fala, essa lição se apresenta com divertidíssimas sequencias com um busto do patrono da libertação colonial deles, o político e agrônomo Amílcar Cabral (irmão do primeiro presidente do país, após sua independência em 1973).

Atualmente relevante, sensível e próximo de nossa realidade, Nha Fala é uma excelente escolha para quem deseja uma experiência cinematográfica diferente do cotidiano, sem abrir mão de conceitos familiares, como os clichês clássicos das comédias musicais estadunidenses. Um grande clássico do cinema africano, que levanta questões importantes e que ainda pode gerar debates profundos.

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Nha Fala Poster

Nha Fala

Nha Fala

País: França/Portugal

Diretor(a): Flora Gomes

Roteirista(s): Flora Gomes, Franck Moisnard

Elenco: Fatou N'Diaye, Jean-Christophe Dollé, Ângelo Torres, Bia Gomes

Idioma: Crioulo bissau-guineense

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