Clássicos

Twin Peaks: Fire Walk With Me

Publicado 1 mês atrás
Nota do(a) autor(a): 5

O longa Twin Peaks: Fire Walk With Me, uma prequela da série Twin Peaks, lançada originalmente nos anos 90, marcou para sempre a história da televisão nos Estados Unidos. Criada em parceria por David Lynch e Mark Frost, a história gira em torno da pequena cidade que dá nome à série e carrega o grande mistério do crime brutal que levou à morte da jovem Laura Palmer (Sheryl Lee). O enredo da série acompanha o desenrolar dos meses seguintes à tragédia, explorando a vida dos habitantes da cidade, seus segredos e interações com o agente especial do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan), protagonista do seriado e encarregado de desvendar o caso.

Cancelada após duas temporadas e com um episódio final pra lá de impactante, a história foi expandida em 1992 com o lançamento do clássico Fire Walk With Me, que no Brasil recebeu o título de Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer.

Leia também
Nha Fala
Nha Fala

Nha Fala, obra prima de Guiné-Bissau, mostra como se movimentar em torno de tradições são formas de transformar a si e mudar o mundo.

A trama do filme é dividida em dois momentos distintos, anteriores aos acontecimentos da série principal. No primeiro, acompanhamos os agentes especiais do FBI Chester Desmond (Chris Isaak) e Sam Stanley (Kiefer Sutherland) investigando o misterioso assassinato da jovem Teresa Banks (Pamela Gidley) na cidade de Deer Meadow. No segundo, um ano depois, na cidade de Twin Peaks, a jovem Laura Palmer vive seus últimos dias entre a rotina escolar, o trabalho em uma cafeteria, o abuso de drogas, medos e indecisões amorosas.

Fire Walk With Me carrega o melhor do estilo de David Lynch e dos elementos que marcaram a criação do universo de Twin Peaks. Há mistério, personagens intrigantes e excêntricos, surrealismo e um certo humor ao longo das duas horas de duração do longa. A diferença aqui é o tom mais sombrio e a iminência de uma tragédia. A mitologia da série é revisitada e aprofundada com a introdução de novos elementos, começando pelo caso de Teresa Banks.

Na primeira parte, em que acompanhamos dois agentes do FBI investigando o assassinato de Teresa Banks, há uma sensação de déjà vu, sugerindo um ciclo fadado a se repetir inúmeras vezes.

David Lynch, por meio de seu personagem Gordon Cole, parece brincar com a tentativa do público de encontrar sentido em seus elementos surrealistas. O personagem transmite instruções da investigação à dupla de agentes por meio de Liu (Kimberly Ann Cole), uma figura burlesca de cabelo e roupas vermelhas. No diálogo seguinte, os agentes decifram cada uma das mensagens implícitas da personagem com certa facilidade.

Esse primeiro segmento ainda apresenta o agente Dale Cooper e conta com a participação especial de David Bowie em uma breve, porém marcante, aparição. Embora rápido, esse trecho da narrativa preenche lacunas e enriquece o personagem de MacLachlan, conferindo-lhe conhecimentos e intuições que serão importantes para o caso de Laura Palmer. Talvez não fosse o início, mas a conexão entre Cooper e Laura precede em muito os acontecimentos derradeiros da cidade de Twin Peaks, atravessando o tempo de maneira sobrenatural.

Partindo para o segundo segmento, temos uma introdução arrepiante à personagem Laura Palmer em vida, acompanhada da trilha sonora clássica da série. Enquanto na série Twin Peaks a atmosfera é carregada pelo impacto da ausência de Laura na vida dos habitantes da cidade, em Fire Walk With Me sua presença é o foco, sendo apresentada de forma hipnotizante em todos os seus trejeitos.

A sensação transmitida é a de finalmente observar uma peça essencial de um quebra-cabeça ainda em construção e admirar a imagem desse fragmento maior. O mito em torno da morte de Laura Palmer na série ganha ainda mais força ao acompanharmos sua personagem em vida, especialmente em seus angustiantes últimos dias.

Lynch trabalha, no filme, o conflito entre forças antagônicas por meio de símbolos presentes nos próprios personagens. Isso se reflete nos relacionamentos amorosos de Laura, que vive um dilema entre escolher o tímido James (James Marshall) ou o transgressor Bobby (Dana Ashbrook).

De forma mais sobrenatural, as figuras de Bob (Frank Silva) e do agente Cooper aparecem nas visões de Laura como representações do bem e do mal que a cercam. A presença de Bob e a sensação de pesadelo se fundem constantemente em seu universo, seja por meio de visões ou através de uma fotografia contrastada. Já a presença de Cooper, além de se conectar ao final da série, sugere uma tentativa de salvação.

Enquanto isso, a protagonista se vê dividida entre caminhos representados por personagens femininas à sua volta. De um lado, está Ronette Pulanski (Phoebe Augustine), com quem divide tempo em noites em bordéis e abusos de drogas. Do outro, está Donna (Moira Kelly), que, ao mesmo tempo que representa uma inocência que Laura perdeu, atua como protetora e melhor amiga, muitas vezes assimilada à figura de um anjo durante o filme. Isso abre espaço para a presença das figuras religiosas, que são constantemente inseridas na obra.

As diferentes faces de Laura são exploradas. Em certo ponto do início do filme, embora sua similaridade com Teresa fosse descrita como algo facilmente encontrado em todo o país (uma jovem, loira, usuária de drogas e com vida sexualmente ativa), seu universo, suas particularidades e relações encantam a todo momento. Medo, amizade, afeto, luxúria e romance fazem parte desse cotidiano, e a atuação de Sheryl Lee é vibrante em cada contexto.

É um pouco difícil falar sobre o personagem Leland Palmer (Ray Wise) sem entrar em terreno de spoilers (apesar de o filme ter sido lançado há mais de 30 anos). A relação dele com Laura é um dos pilares do filme e traz um paralelo entre pai e filha, mostrando suas inocências sendo corrompidas. Ações simples, como um almoço, são carregadas de tensão na dinâmica da dupla, revelando uma relação dicotômica entre afeto e medo.

Com um destino trágico previamente anunciado, há uma ansiedade crescente até o clímax do filme. Mais do que saber “o quê” acontece, é interessante observar a materialização do “como”, enquanto assimilamos outros elementos que preenchem lacunas e trazem mais perguntas. O belíssimo final traz uma certa esperança e, particularmente, me deixa ainda mais ansioso para conferir a terceira temporada, Twin Peaks: The Return, lançada em 2017.

Como prólogo, Fire Walk With Me consolida Twin Peaks como uma das obras mais fascinantes e ricas tanto no cinema quanto na televisão. As emoções carregadas com o contexto dos acontecimentos da série ganham ainda mais força no filme, tornando-se uma obra essencial para quem deseja se aprofundar nesse universo. David Lynch e Mark Frost constroem Laura Palmer como a representação mítica de uma figura entre a inocência e a violação, trazendo um senso de terror e beleza genuíno a um dos universos mais fascinantes de suas carreiras.

Compartilhar
twin peaks fire walk with me cartaz

Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer

Twin Peaks: Fire Walk With Me

País: Estados Unidos

Diretor(a): David Lynch

Roteirista(s): David Lynch, Robert Engels, Mark Frost

Elenco: Sheryl Lee, Ray Wise, Mädchen Amick

Idioma: Inglês

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *