Assassinos da Lua das Flores começa com um funeral. Não de uma pessoa, mas de um povo e suas tradições. O enterro simbólico dá a tônica do que iremos testemunhar nas próximas três horas e meia de filme.
A história da tribo Osage, sua ascensão e eventual queda é mais um caso de um evento histórico varrido para debaixo do tapete do tempo seja pela vergonha daqueles no poder que pouco ou nada fizeram, ou pela total indiferença dessas mesmas pessoas. A série Watchmen, de 2019, jogou luz em outro desses eventos, o Massacre de Tulsa de 1921 (não apenas contemporâneo a história do longa, mas também referenciado alguma vezes ao longo dele). A destruição de uma próspera comunidade negra por supremacistas era um evento tão esquecido que muitos se perguntaram após o episódio de estreia da série se ele realmente havia acontecido ou se era apenas ficção. Minorias diferentes, mesmo resultado.
No longa dirigido por Martin Scorsese, essa comunidade indígena escanteada pelo governo americano para terras de valor irrisório, que por um capricho do destino encontra petróleo nelas (até mesmo uma cartela no longa os define como “o povo escolhido pelo acaso”), acaba assumindo um papel de destaque no país, atraindo olhares cobiçosos e invejosos da maioria branca americana.
É nesse contexto que entra em cena Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), veterano de guerra que chega na comunidade Osage em busca de oportunidade e, acima de tudo, dinheiro. Sobrinho de um dos líderes brancos da região, William Hale (Robert De Niro), o “Rei”, Ernest será rapidamente convencido a se aproximar de uma família indígena de “sangue puro” para encontrar alguém para casar e poder ter um dia direito aos ganhos provenientes da extração de petróleo da área. Assim, Ernest começa a cortejar Mollie (Lily Gladstone).
Segue-se então uma verdadeira e triste saga da ganância do homem branco contra os povos originários dos Estados Unidos. Desde uma cidade lotada de pessoas implorando pelo dinheiro indígena, cobrando exorbitantes 30 dólares por uma foto, até a formação de novas famílias, toda e qualquer relação entre brancos e indígenas visa apenas o lucro para o primeiro grupo. Não é à toa que Hale, ao comentarem sobre Mollie, pergunta para Ernest se este tolera a raça da mulher ao invés de perguntar se a ama.
E se em um primeiro momento podemos até crer que Ernest nutre sentimentos verdadeiros por Mollie, com demonstrações de carinho e afeto, vamos pouco a pouco acompanhando sua decadência moral para atender ao projeto de poder do próprio tio. Muito disso se deve à composição da performance de DiCaprio. De aspecto sujo, aparentando pouca inteligência ou sagacidade, Ernest pode ser confundido como um mero joguete nas mãos de Hale, mas nada justifica suas ações mais do que seu amor pelo dinheiro. E os momentos em que decide fazer o que é certo são muito mais causados pela inevitabilidade de escapar de seus crimes do que um genuíno sentimento de culpa pelas atrocidades que cometeu ao longo dos anos. A atuação de DiCaprio se esforça em despertar um mínimo sentimento de pena pelo personagem, mas a direção de Scorsese nos aponta que este é um homem que não merece salvação.
Assim como o “Rei” Hale de Robert De Niro, a face mais terrível dessa história. Embora se apresente para a comunidade como um elo entre o homem branco e os indígenas, falando até a língua deles, alguém que busca o bem de todos, ele é na verdade um gângster inescrupuloso que vai manipular as pessoas ao seu redor para obter o que quer. Não só isso como também é um homem ciente da sua posição na sociedade, sendo homem e branco, o que lhe confere uma aura de quase total impunidade para as ações que perpetua na comunidade, aliado a leniência e incompetência do governo local. Ao ser confrontado sobre os crimes que cometeu, ele tem plena confiança de que nada vai acontecer porque, em suas palavras, “todos esquecem e ninguém se importa”. E o público nada tem a fazer a não ser concordar, mesmo mais de 100 anos depois do ocorrido.
Nas mãos de um ator menos habilidoso, Hale poderia ter se tornado um vilão caricato demais, até mesmo pouco crível. Mas a atuação de De Niro, do alto dos seus 80 anos, opta pelo mero contraste entre a imagem de fragilidade de um senhor de idade e as palavras que usa quando se refere aos indígenas e todos que se opõem a ele.
E para fechar a trinca de atuações magistrais, não há como negar que o coração do filme seja a Mollie de Lily Gladstone. É através dela que acompanhamos todo o sofrimento perder não só a família, mas seu povo. De personalidade forte mesmo lutando contra a diabetes (doença contraída pelo contato com o homem branco desde a infância) numa época em que o tratamento com insulina engatinhava, Mollie é a representação de um povo sendo sistematicamente apagado e silenciado. Ao perceber que as pessoas que a cercam são mais brancas do que do seu próprio povo, que se não foram assassinadas foram mortas em decorrência de doenças ou vícios (como a bebida e o dinheiro) trazidos por aqueles que os colonizaram, Mollie vai perdendo sua agência até ficar completamente dependente do homem branco para viver, com as doses de insulina, e para que se faça justiça pelo seu povo, na atrasada intervenção de um FBI ainda em fase embrionária. Até em busca de conforto ela precisa ir a uma igreja em mais uma clara alusão ao apagamento de suas raízes.
Quanto à direção, difícil falar algo sobre Martin Scorsese que já não tenha sido dito e de forma mais inteligente. Seguro em relação ao material que tem em mãos, Scorsese não se afoba para contar sua história, diluindo-a em quase 4 horas sem que em momento algum ela perca a sua urgência e seu impacto. Mas o que realmente se destaca é a sua conclusão.
(Spoilers sobre o final de Assassinos da Lua das Flores a seguir)
Evitando o clichê de encerrar o filme com uma longa cartela que explica o que aconteceu com os personagens após os eventos ali retratados, Scorsese nos transporta para um teatro onde acontece a gravação de um programa de rádio da época. Atores e sonoplastas se alternam encenando essas informações finais diante de uma plateia entretida. Qualquer relação com a onda de produções audiovisuais que transformam crimes reais em entretenimento não é mera coincidência. No entanto, para a última leitura, justamente sobre a vida de Mollie, o próprio diretor sobe ao palco. O que parecia apenas uma alfinetada a espetacularização do crime nos dias de hoje é ressignificado pela leitura embargada e emocionada de Scorsese. Em tempos de absurdos como o marco temporal e a crise humanitária dos nossos próprios povos originários, a luta indígena contra a sua sistemática erradicação continua. E este filme é um lembrete de que essas histórias não devem ser esquecidas jamais.
Respostas de 2
Primor de crônica! Muito bem embasada o que leva a assistir esta saga seja pela temática ou participação de grandes atores. Parabéns!
Belo texto! Estou ainda mais interessado em assistir o filme após ler o texto!