Ao fim da sessão de Ainda Estou Aqui, você vai precisar de alguns momentos para retomar o senso de realidade, tamanha a imersão que Walter Salles construiu para colocar o espectador dentro daquele retrato de memórias da família de Rubens Paiva (Selton Mello) e Eunice Paiva (Fernanda Torres).
A obra narra a vida da família no Rio de Janeiro dos anos 1970 durante a ditadura militar brasileira. Nesse pano de fundo doloroso da nossa história, o ex-deputado Rubens Paiva foi levado de sua casa por soldados para ser interrogado. Infelizmente ele nunca mais foi encontrado. Sua esposa e família lutaram por 30 anos para descobrir a verdade sobre seu desaparecimento, em um dos casos mais emblemáticos de violência do regime militar.
Quando duas jovens missionárias batem à porta do Sr. Reed, um simples debate sobre fé se transforma em um perturbador jogo psicológico.
Só que mais do que retratar um momento trágico do país, Salles usa da sua mágica narrativa para mostrar a intimidade, dramas e pesares de uma família que teve recursos para ser feliz enquanto foi possível. O que torna mais difícil o momento do desaparecimento de Rubens é que o que o antecede são lindos momentos em que a família de 5 crianças vive ao sol, junto do mar e rodeados de pessoas queridas. São cenas de almoço que poderiam parecer um comercial de margarina, mas que em momento nenhum soam falsas – e por quê? Porque são situações naturais da vida, que todo mundo viveu em algum momento pré-tecnologia. A simplicidade da rotina daquela família tira toda a oportunidade de artificialidade.
A fotografia do filme é crucial nessa construção: tons quentes e luminosos pintam os momentos de felicidade familiar, contrastando com as sombras que gradualmente invadem a tela conforme a realidade política se impõe. Tal ternura familiar é interrompida sempre que tanques passam nas ruas, tropas marcham na orla do Leblon e blitz param a primogênita da família sem nenhum motivo. Aquela situação só pode ser ignorada até certo ponto, já que o próprio Rubens já esteve envolvido no cenário político e tem atitudes que podem ser vistas como suspeitas até seu desaparecimento.
Mas um perigo que o filme correu foi o contexto social da família. Abrindo um confessionário, eu mesma tive um pensamento sombrio de não ter empatia por uma família burguesa do Rio de Janeiro – é o amargor em nós que cresce silenciosamente quando testemunhamos uma vida que sonhamos e não tivemos. Família funcional e amorosa, no auge de todos os seus privilégios com empregada em casa e boa comida. Mas o filme consegue desconstruir o mito de que “a ditadura só prejudicou quem estava envolvido com política”, mostrando como a violência do estado afetou famílias inteiras, independentemente de sua classe social. São pessoas, acima de tudo!
Quem foi torturado, intimidado ou fugiu do país eram artistas que lutavam contra esse regime absurdo, eram pessoas com recursos que tentavam mandar cartas para entes queridos de prisioneiros, eram engenheiros que falavam com a mídia internacional em segredo, pois tudo dentro do Brasil era controlado pelos militares. Foi uma época difícil pra quem tentou lutar contra; pra quem seguiu sua vida normalmente, infelizmente não causou o impacto que deveria.
Bastou a Eunice ser levada pra eu começar a chorar como um bebê, pois sinto que essa ameaça não está totalmente liquidada, e pessoas que falam contra ou até mesmo estão associadas com alguém que faz algo pra mudar, podem sofrer as consequências.
E são exatamente as quebras de harmonia que tornam preciosos os momentos da família de Rubens e Eunice. É nisso em que o projeto se destaca: não são apenas cenas de uma família privilegiada, mas o retrato do que a violência política pode arrancar de qualquer um de nós.
Não é a ditadura que ganha destaque aqui, mas como Eunice lida com o que esse regime tirou dela e seus filhos. Uma casa antes tão montada para felicidade, tão viva, se escurece no momento que agentes invadem e oprimem a alegria de viver de seus habitantes. A casa em si é um grande personagem – cada objeto conta uma história própria: os livros nas estantes falam de sonhos e ideais, as fotografias nas paredes testemunham momentos de alegria, os brinquedos espalhados narram a infância interrompida. Mas de repente não existiam mais sonhos, perspectiva ou alegria, ficaram apenas nas memórias, que é como eu decidi encarar o filme: ele é feito de lembranças, não tragédias.
Eunice tenta a todo custo proteger seus filhos, mesmo com seu marido desaparecido. Ela encontra força para conduzir a família numa direção que não é a de autopiedade, preserva a inocência dos mais novos e impede as mais velhas de entrar numa luta que não tinham como vencer naquele momento. Anos depois, ela se tornaria uma importante advogada e ativista na luta por justiça, mas naquele momento, seu foco era manter a família unida. Fernanda Torres é imensa no projeto, todos os seus olhares e trejeitos tentam esconder a dor de uma esposa e de uma mãe que precisa conter seu desespero pra seguir em frente. Ela não desiste de saber o destino de Rubens ou de aproveitar a vida com seus filhos, mas sem ele, simplesmente ficou um vazio, que só foi respondido 30 anos mais tarde.
Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do casal, esse projeto não precisa de um troféu de ouro para ter seu reconhecimento, embora Salles esteja investindo numa campanha ferrenha – e com razão, não é isso que engrandece seu trabalho. Ele por si só fez uma coisa belíssima e Fernanda Torres é a melhor atriz no coração de cada brasileiro que vai assistir sua performance em tela junto de sua mãe, Fernanda Montenegro, que é uma joia brasileira. Ela conclui o filme sem dizer nenhuma palavra, ela encerra esse ciclo com os seus olhos, cheios de história e cheia de saudade.
Todos nós gostaríamos que Fernanda Torres subisse naquele palco em Hollywood para lavar a honra do Oscar roubado da mãe em 1999, mas é mesmo necessário? Mãe e filha, de mãos dadas, fecham esse ciclo por nós.