Crítica de filme

Anora

Publicado 2 semanas atrás
Nota do(a) autor(a): 4.5

Na primeira cena de Anora, novo filme de Sean Baker, somos apresentados a um grupo de trabalhadoras sexuais, cada uma atendendo seus respectivos clientes em diferentes cabines da casa noturna em que trabalham. Na última dela, somos introduzidos a nossa protagonista Anora, ou como ela gosta de ser chamada, Ani (Mikey Madison). O filme não perde tempo em estabelecer a rotina da personagem. Ani passa suas noites atendendo o máximo de clientes possíveis, usando seu corpo e sua sexualidade como moeda de transação. Não existe julgamento ou preconceito por parte da câmera ao abordar aquela realidade, compartilhada por muitas mulheres que precisam recorrer a essa profissão como modo de sustento.

Essa sequência de abertura acontece ao som de uma versão da canção Greatest Day da banda britânica Take That, uma escolha inteligente, tendo em vista que um encontro que ela teria com um cliente nessa mesma noite daria início ao que Ani, provavelmente, consideraria naquele momento, a grande virada de sua vida. Isso porque a personagem conhece Vanya (Mark Eydelshteyn), um jovem extremamente rico, filho de um oligarca russo bilionário, que logo engata um relacionamento exclusivo com Anora, eventualmente lhe propondo em casamento. É uma história digna de Cinderela, ou é isso que parece, até os pais de seu novo marido ganharem conhecimento do recente matrimônio entre os dois. O que se desenvolve a partir dali é uma escalada de ritmo frenético que passeia da comédia, com ênfase no subgênero screwball, até a ação, sem nunca perder sua coerência temática e tonal. E isso se deve a um nome em especial, Sean Baker.

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O cineasta possui uma escrita afiada. Não que isso seja uma surpresa, afinal ele é conhecido por dedicar a sua carreira a contar histórias sobre grupos marginalizados. Seus filmes anteriores, como The Florida Project e Red Rocket ganharam espaço e atenção pelo retrato respeitoso e humano de indivíduos que são rejeitados pela sociedade por conta do contexto social em que estão inseridos, e esse elemento continua sendo uma característica presente no seu filme vencedor do Palma de Ouro do Festival de Cannes. Seu texto não é mastigado e ele não faz questão de contar suas histórias através de abordagens convencionais. Muito do que ele quer comunicar ganha espaço nas entrelinhas e ele não se preocupa em guiar o espectador para um lugar comum e muito menos tenta manipulá-lo. O mesmo pode ser dito sobre a direção do cineasta, a mais meticulosa de sua carreira até então. Baker possui um domínio nítido sobre linguagem e maximiza o potencial dos elementos em tela para imprimir sua identidade em cada cena, mas o mais impressionante de seu desempenho aqui, é o modo como ele consegue fazer com que todo o caos e desorganização presentes nos eventos do filme jamais transbordem para além da sua função narrativa e afetem a qualidade de seu trabalho de direção.

A intensidade caótica presente em Anora talvez seja um dos aspectos mais marcantes a serem observados na experiência proporcionada por Baker. A partir da sequência, excelente diga-se de passagem, em que os capangas dos pais de Vanya invadem a mansão em que ele mora com o objetivo de iniciar o processo de anulação do seu casamento com Ani, o cenário em que o filme leva os seus personagens continua se expandindo de maneira absurda, mas igualmente divertida e inteligente. Não é uma tarefa fácil pisar no acelerador e se render a uma sucessão de gritos e conflitos sem se tornar abrasivo ou até desnecessário durante essa construção, mas Anora consegue evitar cair nessa armadilha ao traçar um objetivo que justifica o uso dessa abordagem. A culminação de toda a desordem da jornada que acompanhamos resulta em uma cena final inesquecível, que se torna imensamente efetiva graças ao que foi explorado previamente àquele momento.

Mas muito do brilho do filme também se deve ao seu elenco excelente. A novata Mikey Madison entrega uma atuação magnética no papel da protagonista. É o tipo de performance reveladora que constrói carreiras duradouras. A atriz, extremamente expressiva, se joga de braços abertos na fisicalidade da personagem, entregando um trabalho que consegue ser expansivo, divertido, dramático e delicado, sempre capturando a jornada de Ani, feroz e ingênua, com uma naturalidade surpreendente. Mas ela não é o único destaque de atuação do projeto. Yura Borisov, responsável por interpretar o russo Ygor, traz uma performance carregada de carisma e empatia que preenche a tela sem nenhum esforço visível por parte do ator, e Mark Eydelshteyn da vida a um Vanya inconsequente e imaturo, com plena convicção de como alguém como ele interage com o mundo. A segunda metade do longa, depende consideravelmente da química do elenco para não se tornar maçante e não perder vista da autenticidade presente até então. E a sincronia e preparo apresentados por esse grupo acaba se tornando essencial para a conquista desse feito.

Anora é uma obra dinâmica de excelente execução técnica e rica em coesão – pautada na desconstrução do ideal do conto de fadas, lançando um olhar realista sobre a disparidade entre classes, hierarquia social e como o poder aquisitivo é capaz de oferecer oportunidades, mas também destruí-las na mesma medida. Mas acima de tudo, o filme é a história de uma jovem mulher desesperada em preservar a sua dignidade e exercer alguma forma de autonomia sobre seu futuro, mesmo que de forma imprudente ou descabida, porque para Ani, oportunidades não se materializam na frente de sua porta e qualquer brecha que sinalize uma possível mudança de circunstâncias é uma aposta pela qual vale a pena correr o risco, mesmo que no fundo, ela nunca tenha passado de uma grande ilusão.

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Anora

Anora
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País: EUA
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker
Elenco: Mikey Madison, Yura Borisov, Mark Eydelshteyn
Idioma: Inglês, Russo, Armênio

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