Eurico Cruz (Emílio de Melo) tem duas mulheres que possuem o mesmo nome. Vive com elas em casas separadas, uma no deserto e outra em frente ao mar. Um dia, ele recebe um bilhete ameaçando-o de morte, assinado apenas com uma inicial. Ele então passa a desconfiar que uma de suas esposas quer matá-lo. É sob essa tensão que Aos Pedaços, filme que estreia nos cinemas no dia 13/02, mobiliza o espectador em seus 93 minutos de duração.
O trabalho da crítica cinematográfica às vezes é ingrato. Muitas vezes parecemos chatos, esnobes ou não conseguimos captar, na mesma frequência que o público, aquilo que chama a atenção. Às vezes, nosso trabalho, por mais bem pensado que seja, fica datado rapidamente (minha resenha, algo elogiosa, de Emília Perez que o diga). Porém, se algo faz compensar tudo isso, é lembrar o quão privilegiados somos neste ofício.
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No sertão árido, Agreste (2023) revela a resiliência e fé dos personagens em uma história de esperança e sobrevivência.
Quando criança, eu assisti à lendária série Turma do Pererê pela TV Brasil. Um dos episódios me marcou tanto que, basicamente, direcionou minha carreira até este momento. Caso não tenha fugido demais do tema (mas juro que isso fará sentido), permita-me descrever o episódio.
Um cineasta chegou para filmar e contratou os habitantes da mata do Fundão para reencenar praticamente Deus e o Diabo na Terra do Sol. O cineasta se chamava Ruy Batalha (magistralmente interpretado por Othon Bastos). Quando descobri que todas aquelas referências estavam relacionadas à realidade e que Batalha se baseava em um cineasta real, me apaixonei por tudo aquilo. Rapidamente fui atrás dos clássicos do cinema brasileiro e busquei descobrir mais sobre a carreira do homem homenageado por Ziraldo, Ruy Guerra.
Então, hoje me vejo, 15 anos depois, vendo um filme do próprio, antes de seu lançamento oficial. E que experiência! Aos Pedaços, em sua estrutura similar a uma peça de teatro, carrega em si um excelente suspense. É muito difícil adaptar uma estrutura teatral para o cinema. Ruy Guerra, sendo muito experiente nas duas funções, consegue fazer isso de forma magistral.
As atuações das esposas de Eurico Cruz (Ana e Anna, interpretadas por Simone Spoladore e Christiana Ubach), junto com as do próprio, à primeira vista, parecem muito acima do tom esperado pelo cinema. Entretanto, rapidamente nos vemos imersos nas imagens, como se fôssemos plateia de teatro, observando antes de tudo uma performance. Esse é um aspecto, inclusive, que o cinema comercial tende a abandonar, o que causa, em nós, acostumados com o padrão de Hollywood, um grande estranhamento quando lidamos com isso.
A adaptação ao formato teatral se dá pelo uso magistral da trilha sonora, que direciona muito bem as emoções passadas pelo texto carregado de simbolismo e frases de efeito. Esse não seria um trunfo a ser detalhado, se não houvesse o problema histórico dos filmes brasileiros com a mixagem de som. Aqui, o som nos guia de forma muito intensa pelas emoções sentidas e expressadas pelos personagens.
Porém, mais que o texto, mais que a direção dos atores, mais que a mixagem de som, é a fotografia o grande trunfo de Aos Pedaços. Filmado inteiramente em preto e branco, o filme experimenta muito mais do que achamos ser possível em um filme teatralizado e sem cores. Temos todo tipo de ângulos, tomadas, efeitos, trucagens. Melhor ainda é a forma como tudo isso está sincronizado, inclusive na personalidade do protagonista, assombrado por luz e sombra. Vale lembrar que um diretor em idade avançada fez o filme, o que, como vemos em Megalópolis (2024), torna tudo mais difícil por diversos fatores.
Porém, podemos dizer que o filme é perfeito? Não. Existe um grande problema, que acaba por ser um vício conhecido dos cineastas brasileiros, sobretudo dos figurões. É a mania de expor, por meio de diálogos, algo que se poderia mostrar. Chega a ser um pouco decepcionante que um filme tão bonito, com uma composição visual tão inteligente e sofisticada, tenha que usar e abusar (principalmente abusar) de personagens que expõem de forma óbvia suas intenções, quem são e o que fazem.
Esse problema está óbvio nos primeiros 5 minutos do filme. Já adianto que eu amo Arnaldo Antunes, inclusive como ator. Entretanto, nesse começo de filme, o ex-Titãs e Tribalistas, aparece como a voz da consciência de Eurico Cruz e vai contando tudo o que a gente poderia descobrir por meio das imagens. Irritante, para dizer o mínimo.
Ora, o filme tem potencial para nos desafiar a desvendar a personalidade contraditória e paranoica de seu protagonista, sem a necessidade de uma voz de sotaque paulistano e anasalado descrevendo sua vida. Pior, essa personagem desaparece no desenvolvimento da trama e não faz a menor diferença, provando meu ponto quanto a sua inutilidade.
Apesar de belo, Aos Pedaços transmite uma falta de segurança na própria história que pretendia contar, criando uma dissociação entre o que diz e o que exibe. Muitas vezes, é preferível esquecer os diálogos e focar no que está acontecendo. Isso é triste, pois o texto é muito bem construído, e seria melhor se Guerra não sentisse a necessidade de explicar o que acontece naquele ambiente.
Mesmo com isso, Aos Pedaços é um filme que vale muito a pena ser visto. Ainda mais se lembrarmos que ele demorou 5 anos em uma jornada de circuitos de cinema, até se viabilizar para o nosso mercado interno. Mesmo para quem não conhece o trabalho de Ruy Guerra, é a oportunidade de conhecer a capacidade e o porquê de ele ser um dos maiores nomes do cinema brasileiro. Talvez, para você que está lendo, não seja um encontro com sonhos de infância, mas certamente é uma aproximação com a sensibilidade e a força que só as imagens conduzidas por um mestre podem nos proporcionar.