Crítica de filme

Assassinos da Lua das Flores

Publicado 1 ano atrás
Nota do(a) autor(a): 4,2

A história de Assassinos da Lua das Flores é contada da perspectiva de Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) um veterano de guerra que chega em Oklahoma com a intenção de enriquecer. Inicialmente ele recebe a ajuda de seu tio, William Hale (Robert De Niro) e começa a trabalhar como motorista de táxi. É assim que conhece sua esposa Mollie Burkhart (Lily Gladstone).

Na primeira hora de filme, é fácil pensar que se trata de um simples romance histórico cercado por dificuldades da época, mas são dois os diferenciais dessa obra: o diretor Martin Scorsese e o livro em que ele se baseou.

Muito mais do que um romance de faroeste, Assassinos da Lua das Flores revela um importante e trágico recorte da história norte-americana – mortes em circunstâncias misteriosas que aterrorizaram os membros da tribo Osage na década de 1920. E por que essa perseguição? A tribo possuía a maior renda per capita do mundo, já que suas terras tinham fontes inesgotáveis de petróleo. E onde tem ouro negro, tem ganância e violência, temas em que Martin Scorsese é PhD. 

Pelo que andei apurando em minhas pesquisas, os maiores destaques do livro são as investigações dos assassinatos, a tribo Osage e a criação do FBI, fundado por J. Edgar Hoover, considerado o primeiro diretor do Bureau de Investigação. E nisso o diretor experiente poderia nadar de braçada, não fosse o seu calcanhar de Aquiles, Leonardo DiCaprio…

Já de cara fiquei incomodada com o protagonismo de Ernest em uma história que não era dele, e fica pior quanto mais acesso temos ao seu comportamento na tela. Seria mais  interessante acompanhar a história pela perspectiva dos investigadores em vista das limitações de Scorsese, assunto que será abordado mais à frente – e se puder ser mais ousada, seria ótimo não revelar quem foram os culpados até o ato final.

Para nossa sorte, o diretor não tem só um queridinho, e fomos abençoados com a presença ativa do personagem de De Niro puxando as cordas da trama. Com tantos sucessos nas costas, ele não tem que provar mais nada, mas digo com convicção que entregou o melhor vilão no ano de 2023.

Ser maquiavélico e cair no clichê é fácil, mas imprimir a crueldade debaixo da pele de cordeiro é um talento que só alguém com a experiência De Niro é capaz de retratar. Mais do que nunca somos expostos a casos de racismo, cercados de pessoas que não tem vergonha em revelar seus preconceitos e traços de crueldade acerca das minorias, são diversos os vídeos de pessoas de origem humilde, setores de serviços e etc, sendo humilhadas por um discurso de superioridade.

Agora, imagina  se deparar com alguém que te afaga quando tem plateia e ao mesmo tempo te esfaqueia pelas costas? Sinceramente, eu não sei qual tipo causa mais horror, o racista que esbraveja seus preconceitos sem consequências ou o do tipo inteligente e velado. Aqui, vamos encontrar os dois tipos.

E embora seja um deleite assistir esse vilão se revelando diante de nossos olhos, o filme peca demais por não entregar o protagonismo inteiramente na mão da talentosíssima Lily Gladstone. Na primeira hora de filme, estava hipnotizada com a entrega da atriz, com o carisma que Mollie transmite, com seu olhar sereno e a presença terna – não à toa que capturou o coração de Ernest. Por isso, não há dúvida de que Lily foi a estrela mais brilhante do elenco, que com sua grandiosidade ofuscou e encolheu Leonardo DiCaprio, que tem um Oscar na prateleira e prestígio saindo pelas orelhas.

Os amantes mais ferrenhos do ator podem até discordar depois de assistir ao filme, pois, como sempre, o homem será elogiado pelo trabalho. Lembrem-se, no entanto, que essa história não é de Ernest e muito menos um projeto para o DiCaprio triunfar nas temporadas de premiações. Essa luta era dos Osages, e principalmente de Mollie Burkhart que era a principal vítima de toda essa situação horrorosa que assolou sua família por conta de uns dólares a mais. 

Na estreia do filme, o consultor linguístico Osage, Christopher Cote, compartilhou seus sentimentos complicados acerca do filme, e confesso que essa entrevista me fez enxergar o que senti falta na história, mas não soube verbalizar quando saí da sala de cinema. Leia o trecho da entrevista abaixo:

Aviso de spoiler

“Como Osage, eu queria que fosse na perspectiva da Mollie (o filme) e o que sua família vivenciou, mas acho que precisaria de um Osage para contar essa história. Martin Scorsese, não sendo um Osage, fez um ótimo trabalho representando nosso povo, mas essa história está sendo contada quase na perspectiva do Ernest Burkhart, e eles meio que dão pra ele essa consciência e implicam que existe amor. Mas quando alguém conspira para assassinar sua família inteira, isso não é amor. Isso vai para além do abuso. E eu acho que no fim, a pergunta que fica é: quanto tempo você consegue ser cúmplice do racismo? Por quanto tempo você testemunha algo errado e não diz nada a respeito? Não se manifesta. E eu penso que esse filme não foi feito para um público Osage. Foi feito para quem não é um Osage. Aqueles que foram privados de direitos, podem se relacionar. Mas em outros países que existem ações e histórias de opressão, essa é uma oportunidade para eles se perguntarem essa questão de moralidade”.

Scorsese explorou o terreno com o que sabia, da forma que conhecia, mas apesar de ser decepcionante não ver mais de Mollie, não tenho certeza se o diretor e seu co-roteirista, Eric Roth, teriam controle total da história se tivessem decidido explorar com maior profundidade a visão dos Osages. Mas abordar questões morais e fazer a audiência simpatizar com um vigarista, ah!, disso ele entende!

No entanto, mesmo vendo a situação pelos olhos de Ernest, a história apresenta seus pontos fortes, pois como Christopher Cote diz, abre um espaço para questionar dilemas, ainda que nem sempre o público compreenda a crítica em cima do personagem, como foi o caso de Jordan Belfort em O Lobo de Wall Street. Perdi a conta de quantos coachs de redes sociais usavam suas falas de inspiração para negócios na época em que o filme estava no auge da popularidade, sendo que o sujeito foi retratado da forma mais vulgar e corrupta pelas lentes de Scorsese.

O cineasta sempre foi muito claro em pintar personagens questionáveis, mesmo oferecendo qualidades que não merecem, mas é assim que funciona o storytelling – nem tudo pode ser 100% bom ou ruim, as pessoas têm momentos diferentes em suas vidas. Talvez, Ernest realmente tenha amado a esposa, mas isso não justifica em momento nenhum seus atos e o filme não passa pano para ele. 

Se o público não entende a mensagem, aí não é responsabilidade de seus idealizadores. Ainda fico besta que o coitado do Scorcese precise defender o tempo de duração do filme, que é de 3h e 26 minutos, em pleno 2023, quando já nos acostumamos com seu estilo e sabemos que ele não sabe ser breve pra contar histórias. A única dúvida que devia restar é: por que não oferecem um orçamento milionário para esse homem  fazer uma série? Tenho certeza que sairemos de um projeto como esse bem alimentados.

O épico de western criminal de Scorsese, por mais que tenha algumas ausências – uma dela sendo o conflito mais direto pela posse de petróleo -, deve ser considerada uma pequena vitória, pois ninguém teve a decência de retratar um grupo marginalizado em um projeto de prestígio com o respeito que tiveram pelo povo Osage.

Também tive um sentimento de alívio e dor quando, mesmo que citado por poucos segundos, falaram do massacre de Tulsa ocorrido em 1921, outra tragédia que a história norte-americana quer esconder para não assumir a responsabilidade de que foi conivente com mais uma tragédia.

Espero que vejamos mais dessas histórias trazidas à luz na forma de entretenimento, mais do que conscientizar, precisamos ser lembrados diariamente que somos iguais, merecemos uma vida digna e respeito. 

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Assassinos da Lua das Flores Poster
País: EUA
Direção: Martin Scorcese
Roteiro: Eric Roth, Martin Scorsese, David Grann
Idioma: Inglês

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