“Ada, a quem o futuro pertence. Sou Ada.”
Atlantique (2019), longa-metragem de estreia de Mati Diop, é a aposta da Netflix para a categoria de Filme Estrangeiro para o Oscar desse ano. E também fez história no Festival de Cannes, sendo o primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher negra a entrar na competição pela Palma d’Or e ainda levar o prêmio Grand Prix. O filme se passar em Senegal, na cidade de Dakar, onde acompanhamos um amor proibido entre Ada (Mame Bineta Sane) e Souleiman (Traore). Ela está prometida a um Omar, um homem rico, e ele trabalha em uma grande obra, mas está a três meses sem receber.
Atlantique é dividido em dois momentos: um drama do subdesenvolvido e o transe tropical. Na primeira metade do filme, acompanhamos as injustiças com Souleiman, que não vendo oportunidades em Dakar, resolve ir junto com os outros trabalhadores para a Espanha. Após a introdução desse personagem, somos apresentados a Ada, a protagonista do filme, uma mulher de 18 anos que se recusa a seguir a vida que lhe foi imposta.
Nesse primeiro momento, Atlantique parece seguir uma tendência do cinema contemporâneo que aposta em um drama sobre a extrema pobreza, como Cafarnaum (2018) e Ayka (2018), uma vez que, além de se passar em um país subdesenvolvido, Diop trabalha alguns temas recorrentes a esses filmes, como a desigualdade socioeconômica e a injustiça social.
A personagem de Ada é oprimida por uma sociedade pautada em valores religiosos e machistas e, no caso de Souleiman, a imigração é um tema trabalhado no filme, já que ele tem que sair de sua cidade natal na tentativa de melhores condições na Europa, porém acaba sofrendo um acidente de barco e morre, um fenômeno relevante na sociedade.
Entretanto, no meio do filme, há uma virada na narrativa e Diop introduz um fator sobrenatural a seu filme: o transe tropical. A partir desse momento, algumas pessoas, predominantemente, mulheres, começam a sentir uma febre intensa assim que o sol começa a se pôr. Isso acontece porque, à noite, os espíritos dos homens que morreram no acidente de barco, entram nos corpos de algumas pessoas e reivindicam os salários atrasados com o patrão.
Essa é a primeira vez que o sobrenatural é mostrado explicitamente, porém o filme dava alguns indícios de um certo realismo fantástico. Principalmente, pela trilha sonora fantástica de Fatima Al Qadiri que sugere um certo mistério, uma fotografia acinzentada que deixa tanto o mar quanto o céu sem cores e uma espécie de névoa que paira sobre a cidade. Entretanto, Souleiman, ao contrário dos outros, entra no corpo de Issa (Amadou Mbow). Essa escolha de Diop é inteligente, pois tanto Issa quanto Ada estão procurando por Souleiman, que possui o próprio inspetor e, ao mesmo tempo, ela foge de Issa. A introdução desse elemento sobrenatural é o que diferencia Atlantique positivamente.
Mesmo este sendo o primeiro longa-metragem dirigido por Mati Diop, a realizadora apresenta um ótimo domínio da linguagem cinematográfica. As cenas das mulheres possuídas pelos espíritos dos homens cobrando o dinheiro do patrão são muito potentes, com uma atmosfera densa e aterrorizante. Além disso, para mostrar o desconforto de Ada, a diretora opta por uma câmera que está sempre em movimento e só se torna estática no último plano do filme, quando ela está finalmente plena.
Em Atlantique, há um ótimo uso de espelhos durante todo o tempo. O primeiro uso é em um diálogo entre Ada e Mariama, em que são utilizados apenas planos dos espelhos. Todavia, o grande momento dessa ferramenta, é quando as mulheres estão possuídas pelos homens e só vemos a eles pelo espelho. Diop cria assim uma estética fascinante, sendo a cena de sexo entre Ada e Souleiman (Issa) uma das mais belas do Cinema. O uso dos espelhos possui uma função narrativa para a personagem de Ada, já que ela não se enxergava na vida a que estava destinada e apenas no momento em que consegue controle sobre ela é que pela primeira vez se enxerga.
Atlantique é um filme sobre a quebra da ordem natural. Ada escolhe sair da vida tradicional senegalesa, abdica de uma vida fácil para ser independente e ficar com quem ela realmente ama. Souleiman e os outros trabalhadores morrem por causa do patrão, assim, retornam para fazer com que ele pague e ainda se humilhe tentando cavar as covas dos homens que ele matou. Esse ato é simbólico, pois não dá para saber quantas pessoas realmente morreram nas mãos desse homem e, provavelmente, nenhum deles foi indenizado. O fato de eles não poderem usufruir desse dinheiro é uma maneira de não deixar que o chefe fique impune de todas as coisas ruins que ele já fez.
Por fim, Atlantique é um ótimo trabalho de Mati Diop e mostra ousadia em utilizar elementos sobrenaturais em sua narrativa.