A extensa filmografia de Michael Mann possui duas pedras fundamentais: o homem e seu trabalho. Do seu filme de estreia, que no Brasil é conhecido como Profissão: Ladrão até seu último lançamento, Ferrari, o diretor consegue explorar as infinitas ramificações que essa simples configuração é capaz de produzir.
Em Profissão: Ladrão, a recusa da lógica empregatícia leva o protagonista ao mundo do crime. Em Caçador de Assassinos, Will Graham precisa da ajuda profissional de Hannibal Lector para capturar um maníaco enquanto sua vida particular se deteriora. Fogo Contra Fogo possui o respeito mútuo das personagens de De Niro e Al Pacino que se dá pelas suas respectivas éticas de trabalho. Em Colateral, devido ao seu trabalho de taxista, Jamie Foxx precisa carregar Tom Cruise de um lado para o outro de Los Angeles numa série de assassinatos encomendados. Miami Vice tem Sonny Crockett de policial infiltrado super adaptado à vida de criminoso, apaixonado por quem deveria deter, cada vez mais se entregando ao faz-de-conta necessário para acabar com um magnata do crime.
O trabalho sempre media as relações desses homens inteligentes e habilidosos, porém quebrados e cheios de cicatrizes, portanto, Enzo Ferrari é uma introdução perfeita ao panteão de Mann. No momento que começa o filme, sua escuderia está a beira da falência, sua esposa o odeia e controla as ações da empresa, seu primogênito morrera um ano antes e seu filho bastardo, fruto de um caso fora do casamento, começa a questionar qual é o próprio sobrenome.
No meio dessa ebulição particular, Enzo e sua equipe se preparam para a Mille Miglia, uma corrida de longa distância disputada na Itália. Mas a morte o persegue como uma nuvem de chuva sobre a cabeça de uma personagem de desenho animado: seu piloto morre em um teste antes da competição, e a substituição ocorre de forma praticamente imediata já que Alfonso de Portago, piloto espanhol, que perseguia Enzo pela Itália procurando um lugar na Ferrari, estava presente durante o acidente e consegue a vaga instantaneamente.
Para evitar a ruína de seu império automobilístico, Enzo precisa fazer concessões: arrumar uma empresa que esteja disposta a financiar a Ferrari enquanto convence sua esposa a abrir mão de sua parte das ações para que a negociação se concretize. Enzo escreve um cheque de 500 mil dólares que Laura não pode sacar porque, se o fizer, a empresa vai à falência. Essa necessidade de sempre ceder para manter, negociar, faz parte da natureza homem-de-negócios que Enzo não necessariamente gosta. Ele é, na verdade, um artesão, um criador de carros, um artista forçado a mercantilizar sua obra para torná-la rentável e alimentar a própria criação. Nascido para correr, forçado a vender.
Ao passo que Laura descobre a outra família de Enzo, a corrida se inicia. O filme sempre tenta jogar dois jogos ao mesmo tempo e se sai bem dentro dessa estrutura difícil que cria para si. Inclusive, articula-se de formas distintas, com Mann filmando imagens internas da casa sempre com muitas sombras vedando rostos como se tivessem algo a esconder, enquanto as tomadas externas da Itália e seus carros de corrida são sempre brilhantes, coloridas e vivas.
No final da corrida, com a Ferrari liderando, de Portago recusa a troca de um pneu para manter-se na frente. Acelerando a cento e cinquenta quilômetros por hora, Mann insere o telespectador no cockpit da Ferrari 335 S para retirá-lo em seguida e contrastar a velocidade com a calmaria da família do jovem Eduardo almoçando. Os pequenos e seu irmão escutam os carros e dirigem-se à rua para vê-los. Em uma reta, a câmera desacelera e o pneu de Alfonso de Portago estoura, ele perde o controle, o carro voa, acerta um poste e, logo em seguida, mata nove pessoas, sendo cinco crianças, numa espécie de efeito dominó macabro. É uma das mortes mais gráficas e chocantes dos últimos anos do cinema americano. Corpos deitados no chão, pedaços espalhados pelo asfalto, a mãe de Eduardo sacode o corpo sem vida do filho, enquanto a câmera se mexe para revelar de Portago, rachado ao meio, dividido em dois. A escuderia Ferrari consagra-se campeã da Mille Miglia de 1957.
Enzo é investigado por negligência, já que sua equipe é vista como um moedor de carne humana após o incidente. Para acalmar os ânimos, Laura suborna os jornalistas e a cobertura da mídia, e pede apenas mais uma coisa a Enzo, que o filho de outro casamento não use o sobrenome Ferrari enquanto ela estiver viva. Nesse momento é como se Enzo, mesmo que atado a essa promessa, finalmente estivesse livre para construir relações com o jovem Piero. Essa natureza de duplicidade é um dos motes do filme que deságua na bela cena final, na qual Enzo e Piero encontram-se no cemitério com o pai dizendo ao filho que o introduzirá ao seu irmão, Dino. A ideia de vida nova a uma relação paterna nascendo num espaço fúnebre é tão dúbia e particular que só poderia vir de um gênio que articula homens ambíguos como Michael Mann.