Quando Peter Bogdanovich, grande nome da Nova Hollywood e também um notório estudante e conhecedor do cinema, lançou em 1997 o livro Who the Devil Made It: Conversations With Legendary Film Directors, a crítica do New Yorker escreveu “Esses eram (e alguns ainda são, já que estão vivos) homens enraizados tanto em Hollywood quanto na história. Suas memórias reunidas fazem com que o passado pareça terrivelmente rico ao lado de um presente pobre em tudo, exceto dinheiro.” A frase ressoa ainda mais hoje, em um momento que os blockbusters custam cada vez mais, empregam mais tecnologia a cada dia que passa e ficam mais desinteressantes e opacos.
O ano é 2021 e franquias foram criadas, outras revisitadas, e, algumas específicas, remixadas. Obras novas apelam para o velho e vendem nostalgia para jovens. Nesse contexto surge Matrix Resurrections, quarto filme da (agora) saga que marcou a virada dos anos 2000. É um alívio assisti-lo e ver que Lana Wachowski entende o momento que vive. Além de metalinguístico, em sua primeira meia hora a obra pode até ser considerada satírica: aqui, Matrix é um jogo de videogame e Thomas Anderson um inventivo game designer. Benquisto e admirado na empresa na qual desenvolveu seu magnum opus, Thomas frequenta um analista que lhe receita uma pílula azul. Qualquer pessoa que frequentou a internet nos últimos dez anos sabe o que significa essa pílula. É a manutenção da normalidade, a recusa do chamado de Campbell.
Mas se tem uma coisa que a nova obra deste universo não é, essa coisa é normal. Dentro da própria franquia a estética é completamente distinta. O filme possui um visual higienizado, “clean”, enquanto a primeira trilogia é notória por seus grãos, sua textura suja e sua ambientação subterrânea, marginal. Em Resurrections, a passagem de tempo é, também, a passagem de tecnologia. Antes filmado com película, hoje é no digital. Se antes a ambientação era na cavernosa e exclusivamente humana Zion, hoje, IO permite que humanos e máquinas compartilhem o espaço, conhecimento e técnicas, sendo possível o cultivo de frutas, algo inimaginável nos primeiros capítulos.
O que permanece são as qualidades das lutas, que remetem ao subestimado Revolutions, o filme da franquia em que as batalhas acontecem majoritariamente fora da Matrix, no qual a fisicalidade dos golpes e reações reinam nas sequências. A brutalidade e uma coreografia mais “realista”, banhadas por uma luz direta, menos difusa e espalhada, destoando das sequências famosas de Reloaded, no qual a suspensão dos corpos e um aspecto mais etéreo são comuns. As lutas entre Neo e o Agente Smith, também na sua versão Bane, parecem a maior referência em Resurrections.
Falando em referências, esse é um dos pontos no qual a obra se diferencia dos blockbusters atuais, calcados em outros filmes. Elementos como Alice no País das Maravilhas retornam mas nunca de forma superficial, sempre reiterando o aspecto de fuga inerente ao universo e suas alegorias de libertação, que ainda estão presentes. Não funcionam como fan services ou uma piscada ao público, mas um lembrete de que estamos habituados a esses signos tão fundamentais para a obra. E, que de certa forma, estamos fugindo das predisposições que tínhamos com a própria franquia. Essa dimensão de habitualidade (e o escape dela) é o que causa a estranheza inicial do filme. Conhecemos essas personagens, seus rostos e passado, mas somos confrontados com uma normalidade estapafúrdia: Trinity, agora Tiffany, ainda ama motos, mas possui um marido (Chad, outra piada que conversa com o mundo aqui fora) e dois filhos.
Ao longo da trama descobrimos que existe uma nova Matrix, que se alimenta da coexistência do casal, mas que os impede de estarem juntos, pois desta forma eles se libertariam. O arquiteto desta nova Matrix é o analista, Neil Patrick Harris, que possui o cargo por, segundo ele, entender a psique humana. Sua solução foi aproximar geograficamente Thomas e Tiffany, mas mantê-los afastados sentimentalmente. Por isso Matrix Resurrections é, na verdade, um filme romântico. É sobre Thomas conquistar Tiffany, e igualmente sobre Neo libertar Trinity. Trinity é, no final das contas, a coisa que mais importa no filme. E é incrível como Lana atribui à personagem de Carrie-Annie Moss toda essa responsabilidade: através do toque. Um gesto tão simples e contido como um apertar de mãos, sob a visão da diretora, transforma-se no mais poderoso ato ao longo do filme. E ele se repete. O primeiro encontro entre Thomas e Tiffany e a libertação de Trinity por Neo, acontecem no mesmo lugar, a partir do contato de suas mãos. Os dois se retroalimentam. Um cria propósito para o outro e para si. A conexão entre eles não é deste filme, foi iniciada há mais de vinte anos atrás, e ainda assim cada beijo é como se fosse o primeiro e cada toque como se fosse o último.
Lana cria e sustenta esse sentimento porque essas personagens são extensões de si. Neles ela trabalha aspectos da sua vida que, quando transformados em imagens, possuem cargas dramáticas pouco vistas em filmes de grande orçamento como esse. Aqui reside um dos vários méritos do filme, que é, apesar de toda a expectativa de grandiosidade e megalomania, a obra toma tempo para se atentar ao mínimo de interação e tirar daí sua riqueza.
Na era clássica de Hollywood, grandes diretores atuaram sob a diretrizes maniqueístas do Código Hays e conseguiram borrar as linhas, como por exemplo Raoul Walsh, que em High Sierra faz Humphrey Bogart, um bandido, atuar de forma carinhosa com os indivíduos quebrados que encontra no caminho, mas devido as normas industriais da época o personagem morre (já que, ao lado de ser preso, esse era o único fim para personagens desse tipo). Aqui, Wachowski compreende o funcionamento do sistema de franquias de ação, entrega o que é pedido, mas no meio tempo reflete sobre o modelo na qual está inserida e se diverte, atentando-se para os pormenores que definirão essa obra como um marco moderno. Matrix Resurrections é o blockbuster perfeito da tão nova década de vinte porque assim como o primeiro Matrix nada é novo, (as piadas meta, autorreferências) mas a disposição desses elementos associados ao drama incutida pela diretora são sem precedentes no estado vigente da indústria.
A personagem Bugs da ótima Jessica Henwick e sua tropa compram a ideia de Neo por respeito ao passado da lenda viva, mas também porque enxergam nessa rebeldia (trocar o conforto de IO pela insegurança de um ataque ao arquiteto) o próximo passo para sua estadia na realidade. É aí que reside o espírito de Matrix. Neo, depois de todo esse tempo, ainda luta por liberar Trinity porque não se desiste de quem vislumbrou o céu com você.
a guerra que nos reaproximou de nós
é a mesma que me pôs a repensar meus sonhos
o quanto neles era só publicidade?
fazendo acreditar que eram meus próprios planos
(Primavera, Don L)