Há tendências muito cristalinas no cinema contemporâneo comercial e “independente” americano. A nostalgia é, provavelmente, a mais recorrente. Se os blockbusters vêm para remixar as franquias (Matrix, Homem Aranha, Pânico), os “independentes” são voltados para a origem de seus realizadores (Era uma Vez em…Hollywood, Roma, Belfast, o vindouro Armageddon Time de James Gray). Nesta segunda lógica, temos Licorice Pizza.
Ambientado no Vale de São Fernando, em Los Angeles, na década de setenta, acompanhamos Gary Valentine (Cooper Hoffman, filho de Philip Seymour Hoffman), um menino de quinze anos que é ator mirim. O filme inicia com a tentativa do garoto de chamar Alana Kane (Alana Haim, da banda Haim), dez anos mais velha, para sair. Ela deixa em aberto a decisão, mas aparece no lugar e ali se inicia a insólita amizade entre eles. É preciso destacar, antes de tudo, o quão fenomenal é a estreia de ambos os atores principais. Cooper e Alana são realmente ótimos em seus primeiros papéis na telona, não só juntos e compartilhando o quadro na maior parte do tempo, mas ambos individualmente parecem muito confortáveis e completamente dominantes em suas respectivas funções.
E muito do filme vai se apoiar nessa força proveniente dos protagonistas. Diferente de outros filmes de Paul Thomas Anderson, nos quais uma abordagem bem rígida com roteiro e estruturas fílmicas saltam aos olhos, como seu mais famoso Sangue Negro, a dramaturgia e a relação seres/espaços fundamenta todo o ponto de Licorice Pizza. Gary embarca numa veia empreendedora muito cedo ao se deslumbrar com um colchão d’água, revendê-lo na feira do bairro e ser brutalmente levado à cadeia, enquanto Alana grita que o encontrará. Essa é uma das cenas mais importantes do longa porque a gente tem contato com a genuína preocupação dela com ele. E aí entra o maior mérito do filme.
A forma que o filme olha para Alana é com devoção mesmo, uma mulher multifuncional, capaz de realizar qualquer tipo de trabalho, braçal ou de vendas, e que acaba se tornando o maior ativo de Gary. Não que o filme a trate como mercadoria, mas ela é, de fato, um ativo. Quando Alana não é sócia de alguma empreitada, Gary a agencia no já desbravado por ele mundo dos atores, levando-a para pessoas influentes no meio e sugerindo que ela jamais diga que não sabe fazer alguma coisa, sendo possível aprender enquanto trabalha no papel. É uma inversão da lógica “pessoa mais velha aconselha mais novo” porque o filme se preocupa em mostrar como Gary agrega na vida de Alana.
Alana é consciente de que pode ser ridículo uma mulher de vinte e cinco anos ser sócia de um garoto de quinze e viver nesse pequeno círculo social infestado de crianças, então a “segunda” parte do filme é voltado para ela servindo de voluntária para a campanha de prefeito de Joel Wachs (Benny Safdie), apenas para perceber que o mundo adulto é tão infantil quanto o infante, com o acréscimo das responsabilidades e prazos. Jon Peters (Bradley Cooper) aparece para reforçar essa ideia dos adultos como crianças grandes e poderosas, já que a personagem está interessada em “tocar o terror” e correr atrás de rabos de saia inconsequentemente, apesar de sua relação com Barbra Streisand.
O platonismo da relação entre ambos é gritante, Gary é perdidamente apaixonado por ela, Alana sabe, e o filme sabe utilizar muito bem esse jogo que rola entre eles, permitindo-se ser bobo. Quando Gary encontra uma menina disposta a beijá-lo, Alana fica enciumada e quer dar o troco, causando uma das cenas mais engraçadas do filme.
Licorice Pizza é sobre todas essas situações que desaguam em boas histórias até serem inexoravelmente esquecidas. A corrida para certificar-se de que sua amada está bem depois de cair de moto, o sorriso ao encontrá-lo depois de uma busca no seu restaurante favorito, a independência de pegar o carro e dirigir por conta própria, sem depender de sua amiga maior de idade.
O que PTA faz neste filme é tornar permanente todas as coisas que já foram importantes até não serem mais: O primeiro amor, o primeiro par de peitos que você viu. Quanto mais velho você fica, mais situações você passou, mais sua memória recente predomina. Anderson está interessado nos elementos relevantes do microcosmo que é a vida de alguém de quinze anos, antes das grandes responsabilidades, do cinismo da vida adulta, o que importa aqui é o que importara, no pretérito-mais-que-perfeito da coisa. As ações que se iniciaram e encerraram no passado, que quando retornadas, arrancam sorrisos. Encapsular tudo aquilo que foi relevante num momento que nada importava.
Uma resposta
Que texto incríveeeel! Capturou tudo o que eu senti com o filme.