Após ‘Infiltrado na Klan’, Spike Lee modera o discurso em ‘Destacamento Blood’ visando internacionalizá-lo.
Dois anos após o lançamento do premiado Infiltrado na Klan nas telonas, Spike Lee muda a estratégia e decide lançar seu novo projeto em um serviço de streaming. Já acostumado a trabalhar com as plataformas digitais (Lee havia lançado Chi-Raq no Amazon Prime Video em 2015), o diretor recorre à Netflix para o seu novo projeto. Há uma estratégia para o lançamento internacional de Destacamento Blood dentro da plataforma e muito dela se traduz no discurso que o filme aborda. Se em Infiltrado na Klan Lee usava da sátira política para incitar a revolta com os crescentes movimentos supremacistas brancos, em Destacamento Blood o diretor resolve abaixar um pouco o tom, usando do didatismo e pregando a união entre os oprimidos como elemento fundamental para gerar uma revolução contrária ao imperialismo. Lee aproveita a sua recém-obtida estatueta para propagar seu discurso anti-establishment dentro da plataforma de filmes mais popular do mundo, ou seja, ele utiliza uma ferramenta propagadora do status quo para expor o ponto de vista dele.
Destacamento Blood conta a história de 4 homens pretos veteranos da Guerra do Vietnã que retornam para o país em busca do corpo de um amigo falecido em combate e de um carregamento de ouro que eles haviam escondido. Além dos companheiros de guerra, David (Jonathan Majors), o filho de Paul (Delroy Lindo), acompanha a equipe durante a jornada. A escolha de colocar o filme com protagonistas ex-combatentes e apenas um jovem no meio deles passa a sensação de que o filme é uma grande aula, pois estes anciões compartilham suas experiências de vida para o rapaz de maneira crível e fidedigna. Estas pessoas tem muito a contar e o reflexo do pós-guerra afetou drasticamente os pensamentos delas. Paul, depois do estresse pós-traumático, se tornou um individualista apoiador de Trump, enquanto Otis (Clarke Peters) adotou uma postura mais serena e moderada, apesar de ter deixado uma filha para trás na Cidade de Ho Chi Min. Spike Lee estabelece uma relação dicotômica entre estes companheiros de guerra visando evidenciar que mesmo se contrapondo, todos possuem alguma questão problemática devido ao conflito.
Spike Lee divide o filme em três partes que se complementam: a primeira evidencia a relação destes amigos de um mesmo batalhão; a segunda é a viagem selva adentro e a memória da guerra; já a terceira é a recriação da guerra. Esse desenvolvimento evidencia uma narrativa ascendente que possui um propósito descrito pela frase mais repetida no longa: “a guerra nunca termina”. Lee coloca seus personagens em um país moldado pela guerra em que os Estados Unidos tentou intervir e ainda extrapola isso para o cenário americano, evidenciando que os mitos fundadores da “terra da liberdade” são pautados pelo derramamento de sangue – principalmente o sangue da população preta. Esse paralelismo é interessante, pois a vitória do Vietnã do Norte foi uma conquista popular, enquanto nos Estados Unidos os populares estavam lutando por direitos primordiais, mesmo tendo ajudado a fundar o país. Dentro disso ainda há uma metalinguagem com a própria Guerra do Vietnã, onde esses soldados populares americanos foram praticamente mandados para o abate em prol da liberdade, por isso a atribuição de que este confronto foi imoral.
A inserção de trechos documentais ao longo do filme evidenciam o caráter fabular da narrativa de Lee – o diretor está interessado em tirar alguma lição deste paralelismo metalinguístico que ele estabelece. Para isso, cria rimas em sua narrativa com os fatos históricos apresentados documentalmente. Se em Boston um negro se sacrificou para salvar os brancos ao pular em uma granada e coroar George Washington, dono de mais de 100 escravos, um dos pais fundadores dos EUA, em Destacamento Blood, um personagem o fará para defender um dos seus irmãos. Se Martin Luther King, Angela Davis e Muhammad Ali discursam identitarismo e clamam por direitos, o falecido Norm (Chadwick Boseman) faz o mesmo nos flashbacks e age como um Deus para o Pelotão Blood, sendo um amálgama de todas estas figuras importantes para o movimento negro. Outra lição que Spike Lee cria neste filme é a de tentar equalizar soldados vietcongs e soldados afro-americanos. A inserção da personagem histórica Hanói Hannah (Van Veronica Ngo) coloca os dois lados em pé de igualdade. Nesse comentário ele analisa a natureza da guerra e a falta de necessidade de um combate entre minorias para a prosperidade de uma elite branca, visto que o Vietnã era uma colônia de exploração francesa, enquanto os afro-americanos, sem direitos, estavam sendo mandados para morrer na Indochina.
Parodiando Apocalypse Now, a viagem pelo rio traz a insanidade e, com ela, o retorno ao trauma da guerra e a busca pelo “ouro de tolo” destes veteranos cria uma rivalidade e a desconfiança entre estes irmãos. Este mcguffin, que só existe por causa de burocracias governamentais que o impediram de ser clamado de maneira rápida, é a materialização das barreiras impostas para repelir a união do movimento negro. O uso do termo ouro de tolo é perfeito, pois nos tempos de mineração a pirita era dada como esmola para os escravos que trabalhavam incessantemente e a recebiam como se fosse ouro de fato. O atrito pela ganância impede a unidade de um pelotão de irmãos e ainda separa pais de filhos. O estrago sistêmico é tão grande que não mantém nem famílias juntas. Paul, o trumpista, numa insanidade similar ao General Kurtz de Marlon Brando, revive todos os horrores da guerra e se distancia dos seus para adentrar a floresta.
Delroy Lindo é um destaque à parte para o filme. Paul é um personagem tão complexo que precisa de um parágrafo de evidência. Após cumprir três turnos no Vietnã e ser traumatizado pelo conflito, resolveu adotar uma postura individualista e apoiar a administração Trump, que é abominada pelo movimento negro e conta com o apoio de supremacistas brancos. A desilusão após o conflito o fez se afastar de tudo o que acreditava e se adequar ao sistema que o oprimia. Ele se tornou uma contradição ambulante e a única forma que ele conseguiu de se reencontrar foi revivendo, mais uma vez, a jornada ao Vietnã. A sequência lisérgica inserida por Spike Lee é poderosíssima, justamente porque em meios a surtos psicóticos, em uma quebra da quarta parede, o personagem tem uma epifania sobre como o sistema tentou inúmeras vezes assassiná-lo – com a guerra e com o câncer adquirido pela inalação do agente laranja, mas nem assim foi capaz de silenciá-lo. Com o punho em riste e após o momento iluminado, Paul finalmente é capaz de fazer as pazes consigo e com seu Deus para poder deixar seu legado ao seu povo.
“Cinco Bloods não morrem, nós nos multiplicamos”
O lema do pelotão representado por Spike Lee reverbera na tela e mostra que, mesmo que tentem, é impossível silenciar um movimento. Depois da recriação pulp do conflito e da tentativa imperialista de roubar mais uma vez das minorias, o ativismo segue de pé e se ramifica. O ouro de tolo vira ouro resistente e o diretor mostra os efeitos da união entre minorias através de doações desse dinheiro nos EUA e no Vietnã contemporâneos. O tom celebratório e cerimonioso do inicio do filme retorna, deixando uma mensagem esperançosa para que os apoiadores das minorias não se rendam ao sistema, assim como Paul fez. Adotando uma postura piegas e narrando em off sobre como o amor é capaz de salvar o mundo, Lee dá forças para quem quiser somar e convoca todos para a luta, por mais difícil que ela possa ser. Destacamento Blood é a aula de Spike Lee em prol de um levante contra o imperialismo e os privilégios: sua lição continua sendo dura, forte e incisiva, mas o diretor abre a mão da raiva para espalhar o amor e o encerramento com o discurso de Martin Luther King um ano antes de seu assassinato e reafirma que ainda há muito direito para ser obtido.