Alguns filmes possuem cenas memoráveis, um momento inesquecível e forte o bastante para permanecer em nossas mentes por muito tempo – quem sabe para sempre. Seja um olhar, uma expressão, um gesto ou um texto, aquele instante marca nosso interior como ferro em brasa na pele. É o ‘Hasta la vista, baby’ de O Exterminador do Futuro; o beijo de cabeça para baixo de Tobey Maguire e Kirsten Dunst em Homem-Aranha; é Jennifer Beals virando um balde cheio de água em si mesma em Flashdance; e é o julgamento de Catherine McCormack no belíssimo Em Luta Pelo Amor, do diretor Marshall Herskovitz.
É uma pena, para não dizer um verdadeiro sacrilégio, que esse longa de 1998, seja tão pouco conhecido do grande público, embora seja um tesouro do Cinema. O título em português, Em Luta Pelo Amor, não lhe faz justiça e soa um tanto pobre quando analisamos a trama que lhe segue. O original, em inglês, é muito mais substancial – Dangerous Beauty, que em tradução literal significa beleza perigosa (pelo que peço licença para usá-lo a partir de agora). O caráter inegavelmente hedonista da obra de Herskovitz começa daí, mas é a partir do discurso poético de Verônica (McCormack) – personagem protagonista do filme -, em seu julgamento inquisitório, que começarei minha análise.
“Eu confesso”, diz ela, “que quando jovem, amei um homem que não se casou comigo por falta de um dote.” E então já sabemos, pela palavra “dote”, que a história se passa em tempos antigos, mais precisamente na Veneza do século XVI. E ao descobrir que Verônica Franco existiu de verdade, Dangerous Beauty se torna também um romance histórico que narra uma parte da era das cortesãs venezianas, uma época dourada em que o prazer realmente parecia ser o caminho para a felicidade, o bem supremo da humanidade, como acreditava uma parte dos grandes filósofos gregos, como Aristipo de Cirene.
E assim, todo o filme foi feito – para ilustrar esses tempos áureos. A Veneza de Herskovitz brilha não só com o sol refletido em suas ruas feitas de água, mas também com o vermelho intenso da paixão, usado sem parcimônia pelo diretor inclusive no filtro da câmera; com o rosa, representando o amor, mais cálido, mas não menos importante; e com dourado da riqueza das grandes famílias e das desejadas cortesãs.
“Eu confesso que tive uma mãe que me ensinou um modo de vida diferente, ao qual resisti no começo, mas que aprendi a abraçar.” A mãe de Verônica, apesar do pouco tempo em tela, é interpretada brilhantemente por Jacqueline Bisset, que chocou a filha ao se revelar uma ex-cortesã e que lhe ensinou o ofício com todo o zelo e dedicação que só o uma mãe pode dedicar pelo bem de uma filha. Ao tornar Verônica uma profissional da paixão (falar sexo aqui seria um eufemismo), Paola (Bisset) não só estava oferecendo a ela um modo de ganhar dinheiro para sobreviver, mas também a liberdade que poucas mulheres tinham àquela época, liberdade que não só as livravam dos grilhões de um casamento por conveniência, mas que também lhes oferecia a dádiva do conhecimento, o que as tornavam as mulheres mais cultas da Itália. Interessante notar que o que os amantes de Verônica lhe confessavam ao pé do ouvido, nem mesmo um padre tomava conhecimento.
“Eu confesso que me tornei uma cortesã, negociando o desejo por poder, acolhendo vários em vez de ser propriedade de um só. Eu confesso que preferi a liberdade de uma prostituta à obediência de uma esposa.” Tudo na expressão corporal de Catherine McCormack traduz essa fala – sua postura, sua elegância sem um pingo de vulgaridade, seus olhares e risos lascivos, sua ousadia divertida, o modo como ela declama poesia. Ao longo do filme, a montagem e a decupagem de Herskovitz vão mostrando a evolução gradual do poder dessa mulher e também da inveja que ela causava nas pobres esposas submissas.
“Eu confesso que encontro mais êxtase na paixão do que na oração. Tal paixão é oração. Eu confesso que ainda rezo para sentir o toque dos lábios do meu amante. Suas mãos sobre mim, seus braços me envolvendo… Essa rendição tem sido minha. Eu confesso que rezo para ser preenchida e inflamada. Para derreter no sonho de nós dois, para além desse lugar problemático, onde não somos ninguém além de nós mesmos. Para saber que isso é meu para sempre.” E desse modo, Verônica choca os religiosos da Inquisição que a julgavam. As expressões boquiabertas desses homens quando ela profere essas palavras traduzem um dos pontos altos de Dangerous Beauty. Tal analogia com a religião faz questionar qual é o limite das nossas amarras morais e da tolerância.
E ela continua. “Se não tivesse sido dessa maneira, se eu tivesse vivido de outra maneira – uma submissa da vontade do marido -, minha alma endureceria por falta de contato e amor. Eu confesso que esses dias e noites seriam punição muito maior do que qualquer outra a que vocês poderiam me submeter”. Aqui, Herskovitz se vale mais uma vez daquele preceito filosófico de Aristipo de Cirene, fundado na percepção de que o prazer é o fim de tudo, o motivo pelo qual vale a pena viver e morrer.
Caminhamos então para o final desse discurso icônico, o qual traduz toda a ideia da película. “Vocês, todos vocês que anseiam pelo que eu dou não podem suportar ver esse tipo de poder em uma mulher. Vocês chamam o maior presente de Deus – nós mesmos, nosso anseio, nossa necessidade de amar -, vocês chamam isso de sujeira, pecado e heresia … Eu me arrependo de que não havia outro caminho aberto para mim. Eu não me arrependo da minha vida.”
E assim, Herskovitz denuncia a heresia, a hipocrisia de uma época que gera ecos até hoje, mas de uma forma tão magnânima que dá vontade de chorar. O diretor usa arte dentro da arte (Poesia dentro do Cinema) sem medo de errar. Seus cenários e figurinos românticos – dá até para perceber o painel ao fundo da imagem – remetem ao Teatro, uma das maiores expressões dos anseios humanos da época em que se passa história e, não obstante, mas maravilhosamente, Dangerous Beauty chega a ser lúdico em certos pontos.
A lição que fica é a de quem somos nós para julgar qualquer um num mundo cheio de vícios onde tudo o que podemos fazer é tentar encontrar a mediana que nos livraria deles, como diria Aristoteles. Lembra o clássico Moulin Rouge – Amor em Vermelho e o notável romance gótico, O Fantasma da Ópera. Lembra a canção Geni e o Zepelim, de Chico Buarque. É possível encontrar a beleza onde só existe preconceitos.
Leia nossa crítica de O Fantasma da Ópera
Em Dangerous Beauty essa beleza está representada nos olhos de Catherine McCormack e no hedonismo de sua personagem, mas hoje, mais de 20 anos depois do lançamento do filme, sua lições são mais necessárias do que nunca. Só assim atingiremos a tão almejada liberdade de que todos tanto falam.
Respostas de 7
NADA JUSTIFICA SE PROSTITUIR… VENDER O TEMPLO SAGRADO… VAI MUITO ALÉM DA MORAL..SE TRATA DE AMOR E RESPEITO PRÓPRIO.. INTEGRIDADE E DECÊNCIA… ISSO NÃO É LIBERDADE.. MAS SIM LIBERTINAGEM.. LAMENTÁVEL UMA MULHER SE REBAIXAR E ACHAR QUE ESTÁ SENDO NOBRE…ESSA É A NOSSA SOCIEDADE DOENTE E POBRE DE ESPÍRITO !!!!
Adorei o texto, Flávia! Muito bem escrito. Parabéns! Vou conferir esses filme (não, eu ainda não assisti. Me julgue!)
Obrigada! Então corra pra assistir! 😉
Pela paixão desta crítica vou ver este filme, só pra ver se consigo captar tudo que você escreveu.
É realmente muito emocionante, Flávio, espero que consiga captar pelo menos um pouquinho! 🙂
Filme realmente lindo!
😉