Crítica de filme

Crítica | Eu confesso o hedonismo de ‘Em Luta Pelo Amor’

Publicado 5 anos atrás
Nota do(a) autor(a): 5.0

Alguns filmes possuem cenas memoráveis, um momento inesquecível e forte o bastante para permanecer em nossas mentes por muito tempo – quem sabe para sempre. Seja um olhar, uma expressão, um gesto ou um texto, aquele instante marca nosso interior como ferro em brasa na pele. É o ‘Hasta la vista, baby’ de O Exterminador do Futuro; o beijo de cabeça para baixo de Tobey Maguire e Kirsten Dunst em Homem-Aranha; é Jennifer Beals virando um balde cheio de água em si mesma em Flashdance; e é o julgamento de Catherine McCormack no belíssimo Em Luta Pelo Amor, do diretor Marshall Herskovitz.

É uma pena, para não dizer um verdadeiro sacrilégio, que esse longa de 1998, seja tão pouco conhecido do grande público, embora seja um tesouro do Cinema. O título em português, Em Luta Pelo Amor, não lhe faz justiça e soa um tanto pobre quando analisamos a trama que lhe segue. O original, em inglês, é muito mais substancial – Dangerous Beauty, que em tradução literal significa beleza perigosa (pelo que peço licença para usá-lo a partir de agora). O caráter inegavelmente hedonista da obra de Herskovitz começa daí, mas é a partir do discurso poético de Verônica (McCormack) – personagem protagonista do filme -, em seu julgamento inquisitório, que começarei minha análise.

“Eu confesso”, diz ela, “que quando jovem, amei um homem que não se casou comigo por falta de um dote.”  E então já sabemos, pela palavra “dote”, que a história se passa em tempos antigos, mais precisamente na Veneza do século XVI. E ao descobrir que Verônica Franco existiu de verdade, Dangerous Beauty se torna também um romance histórico que narra uma parte da era das cortesãs venezianas, uma época dourada em que o prazer realmente parecia ser o caminho para a felicidade, o bem supremo da humanidade, como acreditava uma parte dos grandes filósofos gregos, como Aristipo de Cirene.

em luta pelo amor Catherine McCormack e Rufus Sewell

E assim, todo o filme foi feito – para ilustrar esses tempos áureos. A Veneza de Herskovitz brilha não só com o sol refletido em suas ruas feitas de água, mas também com o vermelho intenso da paixão, usado sem parcimônia pelo diretor inclusive no filtro da câmera; com o rosa, representando o amor, mais cálido, mas não menos importante; e com dourado da riqueza das grandes famílias e das desejadas cortesãs.

“Eu confesso que tive uma mãe que me ensinou um modo de vida diferente, ao qual resisti no começo, mas que aprendi a abraçar.” A mãe de Verônica, apesar do pouco tempo em tela, é interpretada brilhantemente por Jacqueline Bisset, que chocou a filha ao se revelar uma ex-cortesã e que lhe ensinou o ofício com todo o zelo e dedicação que só o uma mãe pode dedicar pelo bem de uma filha. Ao tornar Verônica uma profissional da paixão (falar sexo aqui seria um eufemismo), Paola (Bisset) não só estava oferecendo a ela um modo de ganhar dinheiro para sobreviver, mas também a liberdade que poucas mulheres tinham àquela época, liberdade que não só as livravam dos grilhões de um casamento por conveniência, mas que também lhes oferecia a dádiva do conhecimento, o que as tornavam as mulheres mais cultas da Itália. Interessante notar que o que os amantes de Verônica lhe confessavam ao pé do ouvido, nem mesmo um padre tomava conhecimento.

em luta pelo amor Catherine McCormack and Jake Weber

 

“Eu confesso que me tornei uma cortesã, negociando o desejo por poder, acolhendo vários em vez de ser propriedade de um só. Eu confesso que preferi a liberdade de uma prostituta à obediência de uma esposa.” Tudo na expressão corporal de Catherine McCormack traduz essa fala – sua postura, sua elegância sem um pingo de vulgaridade, seus olhares e risos lascivos, sua ousadia divertida, o modo como ela declama poesia. Ao longo do filme, a montagem e a decupagem de Herskovitz vão mostrando a evolução gradual do poder dessa mulher e também da inveja que ela causava nas pobres esposas submissas.

em luta pelo amor Catherine McCormack

“Eu confesso que encontro mais êxtase na paixão do que na oração. Tal paixão é oração. Eu confesso que ainda rezo para sentir o toque dos lábios do meu amante. Suas mãos sobre mim, seus braços me envolvendo… Essa rendição tem sido minha. Eu confesso que rezo para ser preenchida e inflamada. Para derreter no sonho de nós dois, para além desse lugar problemático, onde não somos ninguém além de nós mesmos. Para saber que isso é meu para sempre.” E desse modo, Verônica choca os religiosos da Inquisição que a julgavam. As expressões boquiabertas desses homens quando ela profere essas palavras traduzem um dos pontos altos de Dangerous Beauty. Tal analogia com a religião faz questionar qual é o limite das nossas amarras morais e da tolerância.

E ela continua. “Se não tivesse sido dessa maneira, se eu tivesse vivido de outra maneira – uma submissa da vontade do marido -, minha alma endureceria por falta de contato e amor. Eu confesso que esses dias e noites seriam punição muito maior do que qualquer outra a que vocês poderiam me submeter”. Aqui, Herskovitz se vale mais uma vez daquele preceito filosófico de Aristipo de Cirene, fundado na percepção de que o prazer é o fim de tudo, o motivo pelo qual vale a pena viver e morrer.

em luta pelo amor Catherine McCormack e Rufus Sewell

Caminhamos então para o final desse discurso icônico, o qual traduz toda a ideia da película. “Vocês, todos vocês que anseiam pelo que eu dou não podem suportar ver esse tipo de poder em uma mulher. Vocês chamam o maior presente de Deus – nós mesmos, nosso anseio, nossa necessidade de amar -, vocês chamam isso de sujeira, pecado e heresia … Eu me arrependo de que não havia outro caminho aberto para mim. Eu não me arrependo da minha vida.”

E assim, Herskovitz denuncia a heresia, a hipocrisia de uma época que gera ecos até hoje, mas de uma forma tão magnânima que dá vontade de chorar. O diretor usa arte dentro da arte (Poesia dentro do Cinema) sem medo de errar. Seus cenários  e figurinos românticos – dá até para perceber o painel ao fundo da imagem – remetem ao Teatro, uma das maiores expressões dos anseios humanos da época em que se passa história e, não obstante, mas maravilhosamente, Dangerous Beauty chega a ser lúdico em certos pontos.

A lição que fica é a de quem somos nós para julgar qualquer um num mundo cheio de vícios onde tudo o que podemos fazer é tentar encontrar a mediana que nos livraria deles, como diria Aristoteles. Lembra o clássico Moulin Rouge – Amor em Vermelho e o notável romance gótico, O Fantasma da Ópera. Lembra a canção Geni e o Zepelim, de Chico Buarque. É possível encontrar a beleza onde só existe preconceitos.

Leia nossa crítica de O Fantasma da Ópera

Em Dangerous Beauty essa beleza está representada nos olhos de Catherine McCormack e no hedonismo de sua personagem, mas hoje, mais de 20 anos depois do lançamento do filme, sua lições são mais necessárias do que nunca. Só assim atingiremos a tão almejada liberdade de que todos tanto falam.

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dangerous beauty poster
País: EUA
Direção: Marshall Herskovitz
Roteiro: Margaret Rosenthal, Jeannine Dominy
Idioma: Inglês

Respostas de 7

  1. NADA JUSTIFICA SE PROSTITUIR… VENDER O TEMPLO SAGRADO… VAI MUITO ALÉM DA MORAL..SE TRATA DE AMOR E RESPEITO PRÓPRIO.. INTEGRIDADE E DECÊNCIA… ISSO NÃO É LIBERDADE.. MAS SIM LIBERTINAGEM.. LAMENTÁVEL UMA MULHER SE REBAIXAR E ACHAR QUE ESTÁ SENDO NOBRE…ESSA É A NOSSA SOCIEDADE DOENTE E POBRE DE ESPÍRITO !!!!

  2. Adorei o texto, Flávia! Muito bem escrito. Parabéns! Vou conferir esses filme (não, eu ainda não assisti. Me julgue!)

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