Um assassinato. Um detetive excêntrico. Vários suspeitos. Uma pergunta.
Quem é o assassino?
Você provavelmente deve ter pensado em alguns exemplos de histórias muito parecidas, seja na literatura, na TV, em jogos de tabuleiro ou no próprio cinema. Uma fórmula tão clássica que acabou virando seu próprio gênero: o whodunnit (em adaptação livre do inglês: “quem é o culpado?”). Entre Facas e Segredos poderia ser mais um entre tantos outros filmes similares e adaptações de livros de Agatha Christie (como fez recentemente o diretor Kenneth Branagh em Assassinato no Expresso do Oriente e retornará a fazer em 2020 com Morte no Nilo), mas o diretor e roteirista Rian Johnson (Looper, Star Wars – Os Últimos Jedi) foge do lugar-comum e cria uma trama que, ao mesmo tempo que reverencia o gênero, injeta nele novo fôlego, apostando em rumos raramente tomados para este filão do cinema.
A história é simples: na noite do seu 85° aniversário, o famoso escritor de histórias policiais Harlan Thrombey (Christopher Plummer) é encontrado morto em sua mansão. Eis que o detetive Benoit Blanc (Daniel Craig) é contratado para investigar o caso e tentar descobrir o que realmente aconteceu na noite em que Harlan morreu. Para isso, ele entrevistará toda a família Thrombey e seus empregados mais próximos. A medida que a investigação avança, fica claro que muitos ali possuem motivos de sobra para querer o velho escritor morto. Nada muito original até aí, certo? Mas mesmo partindo de uma premissa tão básica e batida para esse tipo de filme, Rian Johnson consegue subverter as expectativas do seu público na forma como ele vai estruturar essa narrativa.
Ao invés de deixar algumas revelações para o seu clímax, como a maioria das obras desse nicho, Johnson nos entrega informações cruciais quase que imediatamente, nos forçando a questionar tudo que veremos a seguir. Não se engane, as reviravoltas clássicas do gênero estão todas lá. O filme faz questão de não tentar enganar seu público com falsas revelações ou pontos de vista que alteram nossa percepção dos fatos. O fato de sabermos mais do que a maioria dos personagens não nos impede de sermos surpreendidos e boa parte da diversão está em tentar solucionar o caso junto com eles.
O outro atrativo é ver um elenco de atores consagrados se divertindo com seus personagens. Jamie Lee Curtis (True Lies, Halloween), Don Johnson (Miami Vice), Michael Shannon (A Forma da Água), Toni Collette (Hereditário, Pequena Miss Sunshine), Chris Evans (Vingadores: Ultimato), LaKeith Stanfield (Atlanta, Corra!) e Christopher Plummer (O Informante, Toda Forma de Amor) todos tem seus momentos, muitas vezes tendo que demonstrar a dualidade de seus papéis. Até b dá as caras em uma pequena participação (você provavelmente nunca o viu em carne e osso, mas com certeza já o ouviu como Yoda, de Star Wars). Contudo, os destaques vão mesmo para Daniel Craig (Casino Royale, Millennium – Os Homens Que Não Amavam As Mulheres) e seu sotaque do sul dos Estados Unidos, criando em Benoit Blanc uma espécie de Hercule Poirot americano (ironicamente interpretado por um ator inglês) que não me surpreenderia se aparacesse novamente em outro filme criando assim sua própria franquia, e Ana de Armas (Blade Runner 2049) como a bússola moral de todo o enredo. Com certeza um dos melhores elencos do ano.
Entre Facas e Segredos ainda consegue a proeza de criar todo um subtexto em paralelo à trama principal, relacionado à questão da imigração nos EUA, mostrando que mesmo aqueles que simpatizam com o drama que vivem os imigrantes, ainda se acham superiores e mais merecedores que estes. O fato de nenhum dos membros da família Thrombey saber exatamente de onde veio a cuidadora de Harlan interpretada por de Armas, sempre se referindo a ela por uma nacionalidade diferente, evidencia esse descaso geral com a questão.
Trazendo referências a vários clássicos do universo detetivesco, de Angela Lansburry em Assassinato Por Escrito, Sherlock Holmes e até o jogo de tabuleiro Clue (popularmente conhecido como Detetive no Brasil), o filme é uma bem-vinda revitalizada em um gênero tão fossilizado em clichês. E terminar o texto sem ter que usar a palavra “mordomo” é um grande feito.