Particularmente, como crítico, não sou adepto de evocar a ideia de “roteiro”, porque trata-se de uma parte do processo cinematográfico e não do produto final. Roteiro são palavras no papel, literatura, enquanto cinema é áudio e vídeo. Porém, quando há desarmonia dentro de uma obra, acredito que essa distinção ajuda a entender o que houve para desaguar nesta problemática.
Indiana Jones e o Chamado do Destino é a nossa quinta e (aparentemente) última visita cinematográfica ao arqueólogo mais famoso do mundo. O ano é 1969 e Indy (Harrison Ford) está idoso, seu filho morreu na guerra, sua mulher não pode suportar a perda da cria e pediu o divórcio e, ainda por cima, chegou a hora de sua aposentadoria. O velho professor está há anos afastado de suas aventuras até que sua afilhada, Helena Shaw (Phoebe Waller-Bridge), aparece atrás de um artefato que Jones e o pai dela encontraram em 1944, o Mostrador de Arquimedes. Atrás de Helena há a equipe do ex-nazista e agora ajudante dos EUA Jürgen Voller (Mads Mikkelsen), que acredita que o mostrador pode encontrar o que ele chama de fissuras no tempo, o que permite viagens ao passado.
É a primeira vez que um filme da saga não é dirigido por Steven Spielberg, e aí já começam os problemas. Seria injusto insinuar uma comparação entre o consagrado diretor dos primeiros quatro filmes com James Mangold, o escolhido para lidar com esse capítulo, mas, também, é inevitável. Ainda mais porque Mangold, que é um dos quatro nomes que assina o roteiro, parece incapaz de extrair o melhor das grandes ideias que colocou no papel.
A história é realmente o que se espera de um filme de Indiana Jones: aventuras ao redor do mundo e uma galeria muito diversa de personagens, tanto contra quanto a favor do herói. EUA, Marrocos, Espanha, Itália são os países retratados no filme, mas a grande questão é que todos eles possuem uma abordagem muito parecida, mesmo se tratando de lugares tão distintos e com identidades culturais tão diferentes. O diretor retrata uma passeata nas ruas de Nova Iorque, comemorando o retorno dos astronautas da primeira viagem espacial, da mesma forma que uma visita a um museu na Sicília, o que permite concluir que, por mais que o roteiro proponha tamanha distinção entre os lugares, a direção simplesmente não acompanha.
E se a galeria de personagens é tão extensa quanto a de locações, a abordagem é igualmente estéril. Para uma variedade tão grande de corpos, alturas, idades, nacionalidades e propósitos, todas as personagens se comportam de forma muito parecida. Da criança marroquina side-kick de Helena ao cientista ex-integrante do partido nazista, todos correm na mesma velocidade, possuem a mesma potência no soco, a mesma agilidade. O único que se difere dessa questão é um dos capangas de Voller – um brucutu enorme de fisicalidade exclusiva.
O velho Indy e a nova Helena, com uma enorme distância de idade, enfrentam e lidam da mesma forma com os obstáculos que aparecem. Há apenas uma única instância no filme, durante uma escalada, que Jones aponta como sua idade o atrapalha. É uma péssima forma de lidar com a velhice, algo que o próprio Ford, no filme anterior, incitou o roteirista David Koepp a acrescentar e se aprofundar. Mangold, como roteirista, acerta em na coleção de personagens que cria, mas erra gravemente quando precisa lidar com sua materialização.
Chega a ser uma batalha entre o texto e as imagens. Enquanto o roteiro cria subtextos interessantes em sequências de ação, de novo a mão burocrática de Mangold castra todo o potencial das cenas. Existe uma perseguição na qual Jones está a cavalo e um capanga de moto. O subtexto entre o velho e o novo, o natural e o artificial, o orgânico e o mecânico, estão lá, mas o diretor simplesmente não consegue colher ou propor nada com isso. O cavalo e a moto se comportam da mesma forma.
E as ameaças ao protagonista e sua trupe, que também são distintas, sofrem do mesmo problema. Seja uma enguia no fundo do mar, insetos gigantes numa caverna ou um ex-noivo maluco e mafioso, todos os empecilhos trazem o mesmo senso de urgência, mesmo cada uma delas sendo muito diferente entre si. Indy tem um medo enorme de cobras, então, a cena das enguias deveria ser uma das mais importantes por estar lidando com um trauma reconhecido da personagem. Mas não. A cena vem e vai e está tudo certo, passaram por ela e nada aconteceu, não marca as personagens ou a odisseia a que eles se propõe.
Apesar de algumas tentativas frustrantes de modernizar a saga, como a utilização, pela primeira vez, de câmeras digitais – o que tornou as imagens muito lavadas e as sequências pessimamente iluminadas mesmo com focos de luz diegéticos -, se há um grande acerto do filme, ao lado do roteiro, é a Helena de Phoebe Waller-Bridge. Ela é coisa mais fresca possível do filme, uma personagem feminina como nunca houve na franquia. A sagacidade e esperteza das corriqueiras performances da atriz casam perfeitamente com a condição de contrabandista versada em história da personagem.
Mas talvez, o melhor momento do texto seja já mais para o final, quando decide abraçar e mergulhar na loucura: a viagem no tempo é, sim, real. Voller estava certo. Bem, não completamente. Sua ideia era voltar no tempo e ele mesmo assassinar Hitler, tomando a posição de Führer para si e espalhando o nazismo para o resto do mundo, já que, na sua visão, o antigo líder fascista cometera muitos erros que não ocorreriam em sua gestão. Porém, o Mostrador de Arquimedes o joga para… exatamente o momento em que Arquimedes concluía o aparato.
A sequência a que assistimos é muito interessante em termos de proposição narrativa: um grande arqueólogo e uma aspirante, de frente para uma das figuras mais estudadas e exploradas de todas. A cena em que assistimos Indiana, Helena e Arquimedes se encarando, numa praia na Sicília, após o avião nazista no qual eles estavam ter passado por um buraco no céu que os fez voltar dois mil anos no passado, presenciando uma guerra com romanos, é muito maneira, divertida e descolada. Ainda mais com a recusa de Jones de voltar para seu tempo, onde não tinha sobrado mais nada para ele.
Mas qual o grande problema da sequência e do filme, no final das contas?
A aura de sem gracisse que conduz TODA a obra. Nas mãos de Spielberg, esse filme seria, provavelmente, um dos melhores, mais coloridos e bonitos blockbusters do milênio, já que o diretor abraça com carinho os ideais estéticos de seu personagem. Ainda mais dentro da lógica em que esse e o anterior, Reino da Caveira de Cristal, se inserem. São dois filmes com o espírito pulp do qual nasceu Indiana Jones. Mas se no anterior o diretor submerge nesse ideal e usa extraterrestres, OVNIS, poderes de peito aberto, aqui, Mangold recusa essa estética (e essa escolha moral) e faz um filme feio e pouco inspirado, apenas para responder a péssima pergunta: e se um filme do Indiana Jones fosse insosso?