David E. Neves, expoente do Cinema Novo brasileiro e grande discípulo (se é que dá para dizer assim) de Paulo Emílio Sales Gomes, finaliza sua crítica de Meu Tio da seguinte maneira: “Para bem compreender Mon Oncle é preciso conhecer com perfeição as crianças e os cães”. Acho improvável, beirando o impossível, definir esse longa metragem tão bem como fez o crítico-cineasta.
A obra foi vencedora de diversos prêmios importantes quando lançada em 1958, vencendo o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o Prêmio do Júri no Festival de Cannes e o New York Film Critics Circle Awards de Melhor Filme Estrangeiro. Esse longa é o mais condecorado de toda a curta, porém expressiva carreira de Jacques Tati no cinema.
Meu Tio narra a história de Gérard (Alain Bécourt), que vive em uma mansão futurista. Sua vida é excessivamente organizada e aborrecida. Com a chegada de seu tio, Monsieur Hulot (Jacques Tati), que é sonhador e cheio de fantasias, sua rotina muda completamente. Os dois acabam se tornando grandes companheiros, o que desagrada muito ao pai de Gérard, que quer evitar a “má” influência de Hulot.
Da mesma forma que quando vi pela primeira vez um filme de Akira Kurosawa em cores (Dodeskaden – O Caminho da Vida, 1970), ao assistir esse longa tive a clara sensação que muito mais do que se adaptar ao uso da cor, Tati se expressou por ela – o uso das cores aqui é eloquente, persuasivo, hipnótico.
Talvez mais chamativo, mas tão cativante quanto, é a arquitetura do mundo que visitamos por duas horas – fonte de vários artigos e teses acadêmicas na área da primeira arte.
Monsieur Hulot funciona como uma espécie de espectador comum entrando naquela diegese de exageros tecnológicos nem sempre práticos, ele descobre e reage junto ao público, criando quase imediatamente uma relação de empatia. Trata-se de sátira à mecanização e à modernidade tecnológica, mas com a leveza e ingenuidade de uma criança (ou de um cachorro?).
Mas a satirização se estende além disso, hipertrofiando-se no universo em que se passa a história. Um bom exemplo é o retrato hiperbólico e imaginativo da família do menino: na primeira cena a mãe (dona de casa), que literalmente limpa o carro mesmo com o automóvel já em movimento. Passa pano nas malas, nos chapéus, no filho, no marido… mas que ao mesmo tempo se apega a coisas triviais – se relacionando com as mães de todos nós – como deixar o chafariz de peixe ligado quando visitas entram na casa, mas desligando-o quando só pessoas que ali moram estão presentes.
Não é um filme perfeito, mas suas falhas são superadas por seu frescor singelo e inventividade estética. Existe uma clara subordinação da fala em virtude da ação, o que é de se esperar vindo de um longa-metragem movido à humor físico. Este é outro ponto que pode incomodar algumas pessoas (incluindo a mim mesmo) – as gags, apesar de serem em sua maioria criativas e inventivas, acabam tirando excessivamente o ritmo da narrativa; eu entendo que isso compõe a proposta de Tati, porém em alguns momentos esse humor visual atrasa demais o seguimento da história – transformando Meu Tio em uma comédia incrivelmente longa, especialmente para o período em que foi feita.
Existe, apesar de discreto, um domínio absoluto da linguagem cinematográfica por parte do realizador. Ainda que tenha-se uma sensação de suavidade gerada pela comédia corpórea amena, a encenação dos atores é delimitada e precisa, claramente ensaiada e rígida. Isso é comprovado pelo uso de planos médios e câmera estática como grande parte da decupagem. A distância dos atores também alude à sisudez estilística do diretor; sempre à um afastamento determinado da câmera, a ação fica às vezes perdida aos cantos de tela por essas escolhas estilísticas.
A montagem é pouco expressiva, quase sempre com o papel único de ligar uma cena à outra; distanciando-se da noção de decupagem clássica com vários cortes dentro de uma única cena, aqui a fragmentação espacial é mínima.
A obra foi inicialmente denunciada por alguns críticos franceses, que viram Mon Oncle como reacionário, indo contra a emergente sociedade de consumo francesa, que havia recém abraçado o modernismo. Pelo sucesso internacional do filme, essa versão acabou diminuindo a relevância até ser praticamente esquecida pela história.
O fato é que Meu Tio cumpre o propósito de engajar a imaginação, de surpreender o público, e de tirar risadas de todas as idades; mas também é capaz de (mesmo que num nível subconsciente) deixar uma crítica implícita à automatização do elemento humano e ao consumismo desenfreado da França pós-guerra.
Engana-se quem pensa que um filme destinado à crianças é imaculado: emula ingenuidade, mas está longe de ser inocente.