Um barbante pendurado em um ventilador de teto. Um ferro de passar roupa metálico, brilhante o suficiente ao ponto de conjurar reflexos. O atrito entre corpos em uma troca calorosa de um abraço. Em Nickel Boys, estreia diretorial de RaMell Ross e adaptação cinematográfica do livro de mesmo título vencedor do prêmio Pulitizer, observamos os elementos em tela com a mesma atenção a detalhes em que interagimos com as experiências do cotidiano.
Esse cuidado nos permite acompanhar os passos de Elwood (Ethan Herisse), o protagonista do filme, de um modo inédito, aproximando o público do personagem com a mesma instantaneidade em que os olhos capturam a vida. Abandonado pelos pais e criado pela avó materna Hattie (Aunjanue Ellis-Taylor), Elwood é um garoto inteligente e esforçado em criar oportunidades que o contexto social da década de 1960 nos Estados Unidos (época e local em que a história se passa) não oferece para um homem preto como ele. Em um dia fatídico, a caminho da faculdade, Elwood tem um encontro com a polícia que muda os rumos de sua vida para sempre. Acusado de um crime que não cometeu, o jovem rapaz de 16 anos é mandado para a Academia Nickel, um reformatório juvenil onde a segregação racial, exploração de trabalho manual e violência logo passam a tomar conta de seus dias. Uma vez sendo obrigado a morar no local, Elwood conhece Turner (Brandon Wilson) e os dois adolescentes logo viram amigos, apoiando um ao outro enquanto tentam sobreviver as circunstâncias daquela realidade cruel.
A escolha de gravar o filme do ponto de vista da primeira pessoa é uma decisão arriscada, mas que engrandece a obra para além da ambição. A direção magnífica de Ross compreende que o cinema é uma porta vicária para a materialização de realidades que são silenciadas e em nenhum momento permite que essa abordagem se torne pretensiosa ou priorize o estilo no lugar da substância, sempre trabalhando a fim de colocar o telespectador para observar e interagir com o mundo através da honestidade de seus personagens. Enquanto Elwood enxerga as fundações da sociedade como elementos que podem ser ressignificados, Turner representa a desilusão de uma pessoa que tem a plena consciência de fazer parte de um sistema que foi construído para falhá-lo. Esse conflito de perspectivas entre os dois personagens torna a relação deles ainda mais envolvente. A flexibilidade de Elwood desafia Turner a dar uma chance para a esperança ao mesmo tempo que sua rigidez impulsiona Elwood a se enxergar no mundo a partir de uma posição de menos inocência.
Além disso, o trabalho de fotografia de Jomo Fray é inovador e sensível, traduzindo a força do roteiro de maneira ímpar. Cada vez que a câmera troca de perspectiva entre Elwood e Turner, não só acompanhamos as ações a partir de quem está em controle de guiar a narrativa naquele instante, mas também somos oferecidos à oportunidade de assistir um campo visual que vai de encontro com as particularidades de como cada um deles se porta perante as suas vivências individuais. É um desempenho de qualidade técnica formidável, mas que se torna tão grandioso justamente por exercer um propósito narrativo de extrema potência.
Livre das amarras pré-estabelecidas pelo passado e movido pela sensibilidade, Nickel Boys é uma experiência engajadora que encontra força e propósito ao retratar a injustiça racial através de uma abordagem rica em humanidade, escancarando de modo cru como a violência e abuso são capazes de privar vidas de dignidade e oportunidades. Que privilégio é poder assistir uma obra tão inerente em essência que mesmo desafiando convenções e expectativas, transparece tamanha naturalidade, como se sempre tivesse sido a norma. Um projeto tão íntimo quanto as mãos de seus protagonistas se estendendo em direção a um apoio de suporte.
