* Este texto contém spoilers!
Em O Resgate Do Soldado Ryan, logo após a invasão à Normandia pelas tropas aliadas no famoso e crucial Dia D, o capitão John Miller (Tom Hanks) recebe a missão de adentrar a França ocupada pelos nazistas com apenas alguns homens, a fim de procurar e resgatar o paraquedista James Francis Ryan (Matt Damon), que ganhou o direito de voltar para casa após perder os três irmãos em batalha. Procurando-o como a uma agulha em um palheiro, o grupo de soldados precisa contar com a sorte e encontrá-lo vivo antes das tropas alemãs, uma vez que o batalhão de paraquedistas fora lançado em território hostil dias antes.
A fotografia de Janusz Kaminski impressiona ao retratar a crueza daqueles tempos sombrios e o enquadramento sempre oscilante traz ares ainda mais verossímeis à história que, por si só, já é assombrosa. Mais que isso, coloca o espectador dentro da ação quando acompanha de perto os soldados pelos campos de batalha, auxiliada pelos efeitos visuais e pelo impecável trabalho de direção de arte que mergulha o espectador naquela realidade completamente insana de um mundo tirano – como as cidades totalmente destruídas. A absurda beleza do design de som (costumeiramente excelentes em filmes de guerra) torna a experiência mais assustadora, desde o cuidado dado ao simples cair das gotas de chuva nas folhas ao barulho ensurdecedor das balas zunindo nos ouvidos.
Uma das principais virtudes de Steven Spielberg sempre foi vender muito bem suas ideias, principalmente pelo fato delas envolverem questões familiares como fio condutor das tramas, ainda que discretamente em alguns exemplares. O cineasta sabe manipular suas histórias a ponto de convencer o suficiente para serem compradas, e não seria diferente com O Resgate Do Soldado Ryan. Aliás, a Segunda Guerra Mundial ocupa um delicado espaço em sua carreira e vida pessoal – o próprio cineasta é judeu. Resguardando-se ao não evocar sem necessidade a trilha de John Williams, Spielberg narra sob mãos pesadas – e isso é um tremendo elogio – as batalhas propriamente ditas, sem hesitar quanto ao tratamento visceral visto em tela, tornando tudo o mais real possível, contrapondo sutilmente toda essa sonora “bagunça organizada” ao inserir o silêncio após o cessar do tiroteio da escalada à colina e também em uma cena em meio à guerra do terceiro ato.
Parafraseando Wilson Cunha: “Os primeiros 30 minutos são de tirar o fôlego!” – assim como seus 30 últimos –, a eficiente decupagem em torno do ritmo da montagem de Michael Kahn eventualmente até ofusca o sumiço do sargento Horvath (Tom Sizemore) em grande parte da batalha final – surgindo como um elemento surpresa que jamais fora projetado para tal –, no entanto essa decupagem não livra a ineficiência da mise-en-scène em muitos momentos – também ao estabelecer a geografia das principais batalhas – e do roteiro falho. Spielberg é, sim, brilhante ao criar cenas de tensão, como a do soldado Caparzo (Vin Diesel) alvejado enquanto cuidava de uma garotinha francesa, transformando seu socorro em uma corrida contra o tempo, e quanto à cena da morte de Wade (Giovanni Ribisi), um dos momentos mais dramáticos e impactantes visualmente.
Nesse sentido, a destreza de Spielberg e sua equipe foi importante e desafiadora, pois precisaram dar algum sentido ao roteiro repleto de clichês. Além dos diálogos expositivos que tentam ao máximo criar um laço empático com o público (como se a presença de Hanks como protagonista já não fosse suficientemente capaz), ele transforma o próprio personagem do ator em um ser carismático, mas de arco absolutamente pobre, não no sentido de menosprezar suas ambições, mas como se ele – e somente ele – almejasse retornar são e salvo para os braços da esposa – vide cena das origens do capitão.
Tratando a questão do tempo como elemento crucial para o sucesso da missão – e de fato é – o roteirista Robert Rodat chega ao cúmulo de desperdiçá-lo com momentos irrelevantes, como aquele em que um prisioneiro alemão é obrigado a cavar inúmeras covas para que os corpos dos soldados mortos sejam devidamente enterrados, ao passo que os soldados de Miller presenciam tudo isso simplesmente para certificarem que saia tudo conforme previsto – vale mencionar o ridículo desfecho disso tudo, pois ao liberar o alemão prisioneiro de guerra, o próprio acaba por matar o capitão no final do filme. A falta de coerência narrativa permeia de forma primária, mas pode passar despercebida, assim como a carta escrita por Caparzo como um artifício MacGuffin, funcionando mais como uma maldição do que outro significado qualquer, uma vez que quem a carrega acaba por perder a vida posteriormente – perceba a nítida diferença de significados quando da troca de tecidos durante o casamento entre William Wallace e Murron em Coração Valente, por exemplo.
Ainda sobre a falta de coerência narrativa, claro, há a missão destinada ao pelotão. Note que a crítica não é quanto à necessidade ou relevância do resgate deste homem em específico, mas à maneira com que é tratada tal questão e o quão agravante ela é, escancarando e insistindo na empobrecida velha máxima do “Nenhum homem será deixado para trás” e toda essa bobagem que rodeia filmes do gênero produzidos por lá, cujo patriotismo exacerbado culmina na mais típica representação do dito acima, ilustrado pelo primeiro e último planos do longa de quase três horas, que são justamente a da bandeira norte-americana tremulando.
O Resgate Do Soldado Ryan é um exemplar magnífico da propaganda de guerra tipicamente hollywoodiana, por assim dizer. É um filme de visual elogiável que apela a uma história fraca, mas ambiciosa, de resgate que, obviamente, seria de fácil identificação e que traz certo conforto aos que sofreram direta ou indiretamente em consequência daquilo tudo, recompensada pelo desfecho da rendição alemã ocorrida no ano seguinte ao 6 de junho de 1944.