Crítica de filme

Um Homem Diferente

Publicado 6 horas atrás
Nota do(a) autor(a): 4

Um fato curioso sobre o cinema em 2024 foi a forma como algumas narrativas passaram a refletir sobre a autoimagem humana. A maneira como um indivíduo é visto — e, consequentemente, como se enxerga e se posiciona no mundo — não é uma novidade nas histórias contadas ao longo dos séculos. No entanto, a relação da sociedade contemporânea com esse tema tem levantado particularidades únicas, promovendo reflexões e debates interessantes, que também se traduzem nas produções cinematográficas. Mais do que uma discussão sobre autoimagem, Um Homem Diferente, novo filme de Aaron Schimberg, pode ser visto como uma narrativa sobre ego ferido e masculinidade.

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Na trama, acompanhamos a história de Edward (Sebastian Stan), um aspirante a ator que se submete a um procedimento médico radical para transformar de forma completa e drástica a sua aparência. No entanto, seu novo e tão sonhado rosto se torna a origem de seu maior pesadelo. Por conta da nova fisionomia, Edward perde o papel que parecia ter nascido para interpretar e a mulher por quem estava apaixonado. Assim como seu desejo se concretizou rapidamente, com a mesma velocidade ele volta para assombrá-lo. Desolado e tomado pelo desespero, o protagonista se torna obcecado em recuperar o que foi perdido.

Em Um Homem Diferente, a estética e a narrativa de Aaron Schimberg lembram o estilo de Woody Allen em seus melhores anos. A tragédia de Edward e suas ações resultam em momentos cômicos desconfortáveis, mas fascinantes. Um trecho do filme, por exemplo, com um vídeo institucional, beira o absurdo e consegue arrancar gargalhadas aflitas do espectador.

Desde sua cena inicial, Um Homem Diferente apresenta um protagonista passível, sujeito a ser moldado pelos personagens ao seu redor — seja como ator, seja em sua vida pessoal. A decupagem no primeiro ato, sob a perspectiva de Edward, o oprime de forma sutil, seja pelos movimentos de câmera com zooms quase documentais, seja por uma montagem que enfatiza os olhares das pessoas em seu cotidiano — vizinhos, passageiros do metrô — ou ainda pela trilha melancólica com elementos de jazz.

A transformação na aparência de Edward, que ocorre a partir de um irônico acidente doméstico, mistura elementos dramáticos com body horror e humor. Sentimos a dor e a confusão do protagonista, que, a partir do momento em que arranca o próprio rosto com as mãos, passa a carregar uma máscara como única lembrança de seu antigo eu. Com essa metamorfose, Sebastian Stan brilha ao interpretar dois lados de um mesmo homem: da timidez inicial a uma recém-descoberta confiança, que culmina em novas reflexões sobre autoestima e orgulho.

Boa parte dessa descoberta se dá por meio de outro destaque do filme: a personagem Ingrid (Renate Reinsve), vizinha de Edward e diretora de teatro. A princípio, ela flerta com a ideia de ser um interesse romântico unidimensional, mas o que vemos a partir do momento em que Edward “mata” seu antigo eu e assume a identidade de Guy (um nome absurdamente comum) é uma relação entre duas pessoas centradas em alimentar seus próprios egos.

A relação de Ingrid com Edward, enquanto este ainda possui a condição de neurofibromatose, é em certos momentos fetichista. Ingrid projeta sobre ele a imagem de um herói trágico e unidimensional, cuja história apenas ela poderia “dar voz”. Assim, ela representa uma classe artística que, sob o pretexto de empatia, tenta absorver narrativas de outros grupos para construir o próprio ego.

Ainda que insatisfeito, a partir do momento em que Edward renega sua identidade — seu “eu” e sua história —, ele abre espaço para que outra pessoa, no caso Ingrid, a conte sob sua própria ótica. É nesse momento que o ego ferido de Edward, combinado com cenas divertidas de teatro, evidencia a complexidade dessa relação. A dinâmica entre diretora e ator é bem trabalhada no segundo ato, especialmente com a chegada de Oswald (Adam Pearson).

A performance de Pearson é um dos grandes destaques do filme. Irritantemente simpático, Oswald é a antítese perfeita de Edward. Ao mesmo tempo que desperta o pior no protagonista, traz uma nova perspectiva sobre a aceitação da autoimagem — sem recorrer ao didatismo ou a um capacitismo barato. Sua relação e química com Ingrid são imediatamente palpáveis.

Embora leve a novos e interessantes conflitos — com um Edward mais explosivo —, o filme perde um pouco da força em seu ato final, demonstrando dificuldade em concluir os arcos dos personagens.

Um Homem Diferente combina de forma intrigante comédia e tragédia, temperadas com uma dose dolorosa de realidade. Seu maior trunfo está nos personagens e suas diferentes facetas, que rompem com sucesso a barreira das aparências. Embora beba fortemente da influência do humor neurótico e irônico de Woody Allen, Schimberg consegue construir uma identidade própria ao refletir sobre a fragilidade do ego masculino e a tragédia que acontece quando alguém abre mão de ser protagonista da própria vida.

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um homem diferente poser

Um Homem Diferente

A Different Man
16
País: Estados Unidos
Direção: Aaron Schimberg
Roteiro: Aaron Schimberg
Elenco: Sebastian Stan, Renate Reinsve, Adam Pearson
Idioma: Inglês

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