O longa nacional Vitória chega aos cinemas em um contexto de celebração às produções brasileiras. Após a conquista de Ainda Estou Aqui no Oscar de 2025, muitas expectativas foram criadas em torno do filme, que traz Fernanda Montenegro no papel principal, em uma trama baseada em uma história real.
Além disso, a direção era assinada por Breno Silveira, que infelizmente faleceu durante as filmagens. Curiosamente, quem assumiu a missão de finalizar o projeto foi ninguém menos que Andrucha Waddington, marido de Fernanda Torres e genro de Fernanda Montenegro. O resultado é uma obra emocionante, marcada por violência, compaixão e, sobretudo, coragem.

Manchester à Beira-Mar explora diferentes (e corajosas) formas de lidar com o luto, e nos convida a irmos juntos com nossa própria dor.
Na trama, somos apresentados a Nina (Fernanda Montenegro), uma senhora solitária que, aflita com a violência crescente em sua vizinhança — localizada em Copacabana, no Rio de Janeiro — compra uma câmera de vídeo e começa a filmar da janela de seu apartamento. A idosa registra, durante meses, a movimentação de traficantes da região, com a intenção de colaborar com o trabalho da polícia.
A estrutura narrativa de Vitória remete a um conto de Franz Kafka, em que o indivíduo enfrenta uma série de processos burocráticos intermináveis. Sob a perspectiva de Nina, o espectador compartilha da angústia e sufocamento provocados por cada tentativa frustrada de buscar ajuda junto a órgãos públicos desinteressados, que constantemente a redirecionam para outros departamentos, em outros endereços.
O filme apresenta duas formas distintas de violência: a primeira, explícita e brutal, é praticada pelos traficantes da região; a segunda é mais sutil, manifestada no silêncio e na omissão das autoridades, além do preconceito velado dos moradores do condomínio de Nina em relação aos moradores da comunidade vizinha.
Enquanto a violência explode de forma imprevisível, interrompendo os momentos de calmaria com tiros e medo, o filme constrói gradualmente uma atmosfera de tensão crescente. Esse clima culmina em uma cena impactante, registrada pela câmera de Nina em um ponto decisivo da narrativa.
A alma do filme está em Fernanda Montenegro. Sua interpretação transmite, com delicadeza, uma gama complexa de sentimentos: medo, revolta, compaixão, cansaço, teimosia, solidão — tudo alternado com sutileza. O cenário principal, seu apartamento, também funciona como extensão da personagem, revelando sua história através dos objetos espalhados pelo espaço. A direção sabe explorar o potencial dos recursos disponíveis, evitando excessos e apostando no impacto visual e na verbalização apenas quando necessário.
Como Nina opera uma câmera ao longo de grande parte do filme, a direção opta por entregar à personagem o controle da fotografia. Montenegro parece hipnotizar a lente, que flui ao seu redor, principalmente no interior de seu apartamento. Em contraste, quando a câmera se volta para outros personagens, os planos se tornam fixos, criando um interessante jogo de perspectiva que nos mergulha na visão subjetiva de Nina.
Há também espaço para atuações marcantes, como a de Bibiana (Linn da Quebrada). A amizade entre ela e Nina é construída rapidamente, mas com afeto, em cenas como uma visita ao cabeleireiro e um passeio por uma pista de dança em um bingo clandestino. O jovem ator Thawan Lucas, como Marcinho, desperta a compaixão da personagem principal e percorre um arco próprio, marcado pela perda da inocência.
Outro destaque é o personagem Flávio (Alan Rocha), um jornalista que auxilia no desenrolar da trama e reforça o senso de perigo ao redor. Cauteloso em suas ações, ele apoia Nina enquanto também representa um dos conflitos centrais da narrativa.
O encerramento do filme adiciona novas camadas ao apresentar a verdadeira Vitória — ou Joana da Paz. Sua identidade e aparência reais foram reveladas apenas após seu falecimento, aos 97 anos, quando as filmagens já estavam quase finalizadas. A escolha de Fernanda Montenegro para interpretar uma mulher preta pode causar certo incômodo à primeira vista, mas ganha nova dimensão ao se conhecer o contexto em que Joana vivia: sob o Programa de Proteção a Testemunhas, em que ocultar sua identidade era questão de sobrevivência.
No fim, Vitória é uma obra capaz de cativar até os públicos mais resistentes ao cinema nacional. Aos 95 anos, Fernanda Montenegro continua a entregar performances marcantes e emocionantes, potencializadas por uma direção precisa e uma decupagem que valoriza cada nuance de sua personagem. A história real provoca impacto e empatia imediata — entre o afeto e o medo, entre a dor e a coragem. Por meio de Vitória, a memória de Joana da Paz é eternizada nas telas.