O que poderia ser maior que um rei? Um herói.
Aquaman (2018) é um filme que faria mais sentido ainda se fosse lançado cedo. Esta frase, dita por Nicole Kidman antes da cena em que Momoa vence o guardião do tridente e usa pela primeira vez o traje clássico dos quadrinhos, ressoaria ainda mais se o filme estivesse alocado no período de transição do cinema mainstream para a febre dos super heróis. Ela funciona como uma passagem de bastão da cultura. As fantasias modernas saem do período feudal e vão para o as metrópoles. As armaduras de ferro dão lugar aos collants.
Por questões que fogem às fílmicas, o universo da DC nunca decolou. Os personagens mais famosos dos quadrinhos pertencem ao grupo Warner, que, sentindo-se atrás da Marvel, acelerou a criação de um universo, mas, pior que isso, rendeu-se à fórmula da rival e entrou em um jogo que não poderia vencer.
O verdadeiro valor das obras da DC reside no funcionamento interno de seus filmes. Se a rival sacrifica a individualidade dos longas para o sentido existir num panorama geral, o interessante do universo da DC é que Batman vs Superman habite no mesmo mundo que Aquaman. Que o velho e rabugento Bruce Wayne coexista com o novato e frenético Arthur Curry. Que filmes “sombrios” compartilhem a mesma realidade que os coloridos.
Esse choque entre mundos é de onde surge a figura do Aquaman. Nascido na superfície, de mãe Atlanti e pai americano, essa ideia de que ele é o elo entre as duas civilizações e que possui o poder de unificar a Terra, é o que guia o filme. E, por mais básica que seja, é uma premissa que começa e termina em si, sem precisar do apoio de outros trezentos filmes para sustentá-la.
Para aproximar essa ideia de unificação, o lado humano terráqueo de Arthur é sempre destacado; sua não-seriedade para lidar com os problemas de Atlantis, seu gosto por tomar cerveja com seu pai, seu ritual de trocar as fraldas do filho. Todos servem para estabelecer o contraste entre o que ele gosta e o que ele precisa fazer. Sua intenção nunca foi ser rei, e, talvez por isso, ele seja exatamente o que Atlantis precisa. Seu desapego e muitas vezes incompreensão das normas e tradições deste mundo diferente é o que o torna a melhor saída para o lugar. Atlantis precisa de alguém que refresque os ares e traga um novo espírito.
Seu irmão, preso após os eventos do primeiro filme, precisa ser liberto para ajudar Arthur em sua luta contra o Arraia Negra. Orm foi feito calculadamente para ser o novo rei e manter as tradições, mas seu modus operandi levaria a uma guerra entre o mar e a superfície. Arthur, ao desrespeitar regras, acordos e costumes, busca guiar tanto Atlantis quanto a Terra para um realmente novo caminho. Juntos.
Assim como o primeiro filme, este é colorido e muitas vezes inventivo visualmente graças ao diretor James Wan. Essa inventividade que falta no roteiro ganha uma roupagem megalomaníaca através das imagens. Cavalos marinhos azuis fluorescentes, peixes filósofos humanoides, polvos multi instrumentistas e espiões. O filme se entrega à sua galhofa inerente e segue o fluxo. Linha de sucessão real, cabelos esvoaçantes n’água, ratos gigantescos, nada é impossível no mundo de Aquaman, e Wan sabe abraçar todos esses elementos, do pulp ao mais dramático, enquanto articula um subtexto ambiental que não cai no ecofascismo.
O elenco do primeiro filme era mais recheado (Willem Dafoe não retorna para esta continuação), mas ninguém compromete. Momoa não é um grande ator, mas, devido ao personagem ter sido feito à sua imagem e semelhança, possui a alma perfeita para o papel. A dupla dinâmica com Patrick Wilson funciona a base de piadas que denotam o estranhamento desse ser com a superfície. O fato d’ele ter passado a vida toda nadando cobra um preço quando precisa correr, e o filme usa esse aspecto “peixe fora d’água” para criar um humor absurdo. Quando Orm diz que está com fome, como pegadinha, Arthur oferece uma barata para o irmão, que come e saboreia.
Essa mistura de choque cultural com renegar a realeza, banhado a maximalismo, cria um perfil muito particular para Aquaman. O filme será muito menos celebrado do que poderia devido ao momento em que é lançado, após polêmicas e, também, por fechar o fracassado DCU. Mas é notável que, no maior momento de fadiga da figura dos super heróis, James Wan consiga trazer um frescor ao (se tudo der certo) moribundo gênero.