Aves de Rapina: Arlequina e a sua Emancipação Fantabulosa trata sobre representatividade com sutileza através de momentos não-ditos.
Feminismo e representatividade vendem. A indústria de Hollywood tem ciência disso e vem produzindo filmes que tratam desta temática em larga escala. No entanto, em muitos casos, abordar esta questão pode soar panfletário ou resultar em casos insensíveis, deixando a impressão que estas obras foram feitas apenas visando o lucro. Como exemplo mais recente de um caso negativo, podemos citar o longa O Escândalo. O indicado ao Oscar 2020 aborda os abusos dentro da Fox News de maneira grotesca e irresponsável. Dentro da DC Movies, podemos evidenciar dois exemplos que não são essencialmente negativos, mas minimamente questionáveis: Esquadrão Suicida e Mulher Maravilha.
Embora o primeiro não se proponha a ser um filme que trate destas pautas, comenta-lo é vital para analisarmos como Aves de Rapina: Arlequina e a sua Emancipação Fantabulosa surgiu, pois o filme hiper sexualiza todas as suas personagens femininas, especialmente Harley Quinn, com escolhas de planos extremamente vulgares, com a câmera filmando por entre as pernas da atriz Margot Robbie, por exemplo. Já Mulher Maravilha está longe de ser um filme irresponsável, ele até acerta em alguns pontos, no entanto, a escolha de figurino da heroína corroborou com uma narrativa de que ela segue sexualizada, por mais que o longa trate de empoderamento.
Após algumas produções de qualidade duvidosa e precisando de um grande acerto, a Warner resolveu comprar a ideia de Margot Robbie de produzir um filme feminista sobre a Arlequina. Em princípio, parecia uma ideia estranha, ainda mais com as críticas e recepção negativas para Esquadrão Suicida, mas, aos poucos, tivemos vislumbres de que essa produção poderia dar certo. Com uma equipe majoritariamente feminina, o filme começou a tomar forma até chegar aos cinemas. Para o processo criativo foram contratadas Cathy Yan para dirigir o filme e Christina Hodson (Bumblebee) para roteiriza-lo. É importante ressaltar a participação de mulheres no processo de pré-produção, pois certamente isso colaborou para a qualidade do longa. Enfim, vamos ao filme.
Após terminar com o Coringa, Arlequina (Margot Robbie) se vê desprotegida em Gotham e precisa provar-se uma criminosa digna de respeito e independente de seu ex e, para isso, ela busca roubar o diamante da família Bertinelli. No entanto, Roman Sionis/Máscara Negra (Ewan McGregor) – o mais novo rei do crime da cidade – também está atrás desta joia e conta com a ajuda de seu fiel escudeiro, Victor Zsasz (Chris Messina). A pedra possui uma história sangrenta, pois Sionis mandou executar a família Bertinelli de modo a conseguir sua fortuna. Com isso, Helena Bertinelli/Caçadora (Mary Elizabeth Winstead), uma das poucas sobreviventes, busca se vingar de todos os algozes de seus familiares. Em paralelo, a detetive Renee Montoya (Rosie Perez) investiga o envolvimento de Sionis com a máfia.
Quando este diamante vai parar nas mãos de Cassandra Cain (Ella Jay Basco), todos os envolvidos na trama vão atrás da garota e, também, Dinah Lance/Canário Negro (Jurnee Smollett-Bell), cantora fixa na boate de Sionis e recém-promovida a motorista do gangster, que é amiga da jovem menina e busca ajudá-la a sair desta enrascada. Com isso, a trama gira em torno deste McGuffing (objeto de desejo que serve como dispositivo de enredo), da busca de suas personagens por ele e do desenvolvimento da história individual de cada uma delas.
A representatividade já começa no casting do filme. Com um elenco diverso, há representação de várias etnias dentro do longa-metragem. A Canário Negro (originalmente loira nos quadrinhos) é uma mulher negra, Cassandra Cain asiática, detetive Montoya latina, enquanto Harley e Caçadora são brancas. Além disso, a trama da representatividade é expressada através de diversos momentos não-ditos, apenas exibidos. Ao tratar de emancipação, o filme aborda a independência destas mulheres com relação a algum homem de suas vidas. Harley precisa se provar independente do Coringa, enquanto Dinah precisa se livrar de Sionis. Montoya, além de necessitar superar o machismo no ambiente de trabalho, tem que mostrar que ela deveria estar no lugar do delegado que tomou para si todos os feitos dela. Já Caçadora e Cassandra, precisam superar os laços patriarcais de suas famílias. Há, é claro, momentos em que a questão feminina é verbalizada, mas nunca de forma panfletária e, na maioria das vezes, fica nas entrelinhas, pois o interesse maior é narrar o assalto. É um filme sobre independência da mulher, que poucas vezes aborda esse tema de maneira frontal.
Acompanhamos a narrativa sob a perspectiva de Arlequina. Com uma classificação indicativa alta, muitas quebras de quarta parede (quando o personagem interage com o público) e narrativas em off, o longa adota uma pegada semelhante a de Deadpool, mas, ao contrário de sua fonte de inspiração, a película consegue equilibrar bem os momentos cômicos e dramáticos. Como o filme é visto sob o prisma de uma protagonista mulher, nada mais justo que os olhares (câmeras) do longa-metragem acompanharem a mente de sua protagonista. É justamente isso que o filme faz. Com uma montagem de decupagem aceleradas, a película possui um ritmo frenético e alucinante, emulando a mente caótica de Harley. Além disso, a fotografia lisérgica de Matthew Libatique corrobora para o comportamento maníaco de sua protagonista, com abuso de uso de cores e uma estilização característica. Ainda sobre a estilização, a direção de Cathy Yan não abre mão dela (mas abre mão dos planos grotescos de Esquadrão Suicida), com o constante do uso da câmera lenta e cenas de ação bem coreografadas, o filme rende algumas das melhores lutas dos filmes da DC. O design de produção segue a mesma pegada com toda essa colorização dos espaços. Portanto, há uma unidade narrativa estabelecida que corrobora com a perspectiva da protagonista.
Dentro desta perspectiva de emancipação, é possível perceber que há também um comentário bem superficial a respeito da emancipação sistemática. A Gotham estabelecida é orientada por um sistema falido, comandado por criminosos e regido por um modelo patriarcal. Dentro deste sistema, há um canibalismo social onde as pessoas precisam passar uma por cima das outras para poder sobreviver. É irônico, portanto, que os dois principais vilões do filme se submetam a este comportamento e tentem emular o modelo patriarcal ao mesmo tempo possuem uma tensão sexual latente entre eles, dando a entender que também pertencem a alguma minoria, mas tentam maquiar isso de modo a se manter no topo.
Mudando um pouco de assunto, a grande surpresa que o filme trouxe foi não seguir o que o seu trailer dava a entender, pois, o material promocional do filme sugeria que este longa-metragem seria uma história genérica de formação de equipe, enquanto ele na verdade é um filme de assalto onde rivais entram em conflitos para obter alguma coisa. Esta dinâmica nova é muito menos explorada no sub-gênero super heroico e traz frescor para narrativas adaptadas de quadrinho.
Portanto, Aves de Rapina: Arlequina e a sua Emancipação Fantabulosa é um filme de assalto que trata da representatividade de maneira sutil e delicada. Suas escolhas de enquadramento são respeitosas, o figurino não dá margem a uma sexualização e seus momentos de representatividade são mostrados ao invés de ditos em forma de jogral. O filme estabelece sua premissa através do paralelismo entre a emancipação de suas mulheres protagonistas e a submissão de seus homens ao sistema canibalista de Gotham. É uma grata surpresa que deixa esperanças para o futuro da DC nos cinemas e já figura, na minha opinião, como o melhor filme dessa nova leva, iniciada com Homem de Aço.