O que você vê quando mira o espelho? A pergunta é óbvia, eu sei. É claro que você deve ter respondido “ora, eu mesmo(a)!” e, na prática, estará 100% certo(a)… Ou quase isso. Se pararmos para pensar bem, o espelho é um objeto meio traiçoeiro, capaz de pregar várias peças em nossos pobres cérebros. Utilizado há séculos por ilusionistas em shows de mágica e em parques de diversão (para deleite das crianças que veem a própria imagem distorcida de várias maneiras – ora mais alta, ora mais gorda e por aí vai), também não é de hoje que a Literatura e o Cinema se utilizam dessa superfície para contar suas histórias. Sendo assim, convido vocês a viajarem comigo nessa ideia.
Podemos começar indo bem longe, lá na mitologia grega, quando Narciso se apaixona por si mesmo ao se deparar com a própria imagem refletida nas águas de um lago. O personagem mitológico tornou-se, então, um dos símbolos mais fortes da vaidade, dando origem não só ao termo da psicologia “narcisismo” – referindo-se àquele que ama demais a si próprio -, como também influenciando algumas produções literárias e cinematográficas.
Assim, cito como obra imbuída de forte referência ao herói grego o longa metragem O Retrato de Dorian Gray (2009), baseado no clássico literário homônimo de Oscar Wilde. Nessa história do século XIX, o personagem título, dono de uma beleza estonteante e incontestável, vê-se atraído pela visão de mundo hedonista de Lord Henry Wotton, um aristocrata que considerava o belo e o prazer sensual como os únicos valores dignos de persecução na vida. O retrato de Dorian – que é feito, na trama, por um artista reconhecido -, pode ser visto aqui como um reflexo de sua aparência extremamente sedutora, que vai trazer sérias consequências para ele e os que o cercam.
Dentro desse contexto, impossível não fazer a associação de Gray com outro personagem bem mais recente – porém tão polêmico quanto -, e de sobrenome bastante parecido na grafia e praticamente igual na pronúncia. Sim, refiro-me a Christian Grey, do famigerado Cinquenta Tons de Cinza (2015), cuja trama é conhecida até mesmo por quem não se atreveu a assistir suas cenas tórridas e cujo conteúdo resume-se basicamente à exaltação da boa aparência e da perfeição física.
Porém não são só os homens que sofrem desse amor próprio exacerbado. É muito possível passarmos, portanto, para o lado feminino do narcisismo. Vocês talvez se lembrem da frase “espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?”, pronunciada pela Rainha Má em Branca de Neve e os Sete Anões (1937). Todavia, nesse outro clássico (do qual a versão mais conhecida é a da Disney), o espelho também possui outra conotação. É que dentro dele existe uma entidade que responde à pessoa que olha sua superfície. Uma pena que essa “criatura” não seja muito explorada na história, como bem se sabe, a não ser para dizer à rainha, por anos a fio, que não, não existia nenhuma outra mulher que se equiparasse a ela em beleza… Até o fatídico dia em que nasce Branca (ou Snow, para citar seu nome original). Se essa entidade é do bem ou do mal, entretanto, é impossível dizer, apesar de que ela não é lá muito simpática.
Se, por outro lado, olharmos para outras versões da história, como por exemplo, Espelho, Espelho Meu (Mirror, Mirror – 2012) estrelado por Julia Roberts e Lily Collins, podemos chegar à conclusão de que essa tal entidade, definitivamente, tende para o lado escuro.
Continuando na Disney, voltemos nossa atenção agora para A Pequena Sereia (1989), em que o espelho também aparece em uma das cenas mais lascivas dessa animação. Assim, quando Úrsula, cantando e dançando na pele de Vanessa, mira seu reflexo, não vê a bela jovem em que havia se transformado para afastar o príncipe Eric de Ariel, mas o verdadeiro monstro tentaculoso que ela realmente é. Sua verdadeira face é então revelada.
Ainda na casa do Mickey, cito também minha história favorita, A Bela e a Fera (1991). Vocês se lembram, caros leitores, de qual era o objeto mais precioso que a Fera possuía depois da maldição lançada pela feiticeira que o transformou em um animal? Pois sim, era um espelho de mão, artefato que, quando ele pedia, lhe permitia ver o mundo exterior, do qual ele havia se afastado por vergonha de sua aparência. Em um dos momentos mais tocantes da história, ele o entrega a Bela e lhe diz que o objeto é um meio de ela olhar para trás e lembrar dele. Isso sem falar em Gaston, é claro, um narcisista de marca maior!
Saindo agora dos contos tradicionais, voltemo-nos para uma das criaturas mais assustadoras que habitam os nossos subconscientes desde a mais tenra idade: os vampiros. O que eles têm a ver com o espelho? Bem, todos sabem que os sanguessugas não possuem reflexo (uma de suas características mais marcantes e fascinantes!). Assim em vez de duplicar a imagem do vampiro que o fita, o espelho simplesmente a faz sumir. Ao invés de refleti-lo, dá um jeito de o “internalizar”.
E são inúmeras as histórias com esses sedutores seres da noite. No famoso seriado The Vampire Diaries (2009-2017), na época em que ainda valia a pena, umas das passagens mais intrigantes foi a que tratou dos doppelgängers, termo germânico que significa, basicamente, alter ego, a parte de nossa personalidade que reprimimos por não ter coragem de expor. Por isso, pensar que um vampiro, que é menos do que um reflexo, pode ter um alter ego, é no mínimo, interessante, concordam?
O Médico e o Mostro com os seus Dr. Jekyll e Mr. Hyde, bem como o próprio O Retrato de Dorian Gray são outros exemplos típicos de doppelgängers que intrigam o público até o âmago da curiosidade.
E seguindo esse caminho, não há como não mencionar o prestigiado Nós (2019), com Lupita Nyong’o, cuja trama tem como base o aparecimento de “réplicas” das pessoas, suas imagens espelhadas, suas “sombras”. Complexa, a resposta que o filme nos dá sobre quem são essas pessoas não é muito definitiva. Serão doppelgängers? Serão duplos? Serão sósias? Tais termos, frequentemente confundidos, possuem conceitos semelhantes, mas não são sinônimos. O primeiro possui um sentido mais introspectivo, tendo mais a ver com a fragmentação da personalidade. Já o segundo é bem mais abrangente e pode ser perfeitamente ligado à figura que encaramos quando nos olhamos no espelho.
Vamos voltar um pouco no tempo novamente para citar uma produção bem brasileira que também ilustra o tema do presente texto: a novela O Beijo do Vampiro, de 2002. Para quem não se lembra, o vampirão Bóris, interpretado por Tarcísio Meira, contracenava frequentemente com ninguém menos que o Monstro do Espelho. Verde e horrendo, Guilherme Piva esteve muito bem no papel.
E falando em monstros… Indo adiante com essa “tradição”, na semana passada entrou em cartaz nos cinemas a produção russa A Maldição do Espelho, baseada na lenda da Rainha de Espadas, uma mulher que vivia dentro desse “lugar” invertido que reflete nosso mundo. Vilã hardcore, esse ente maligno e amargurado que só queria matar quem lhe fizesse algum pedido.
Podemos citar ainda a história mitológica de Perseu, que matou a Medusa com a ajuda de um escudo espelhado; o seriado O Último Guardião (2018), em que um dos vilões, o Vizir, tem a capacidade se tornar um duplo e de se esconder em espelhos; o longa O Fantasma da Ópera (2004), em que o Fantasma utiliza espelhos para confundir seus perseguidores; o filme Divergente (2014), em cuja história os integrantes da facção chamada Abnegação, não podiam se olhar no espelho; o aclamado Harry Potter em A Pedra Filosofal (2001), em que o Espelho de Ojesed tem papel importantíssimo; entre tantos outros que existem por aí.
Sendo assim, caro leitor, depois de tudo isso, atrevo-me a repetir a pergunta que lhe fiz no começo ao mesmo tempo em que me pergunto se sua resposta ainda será a mesma. O que você vê quando mira o espelho?
Respostas de 2
Eu gostei bastante e bem interessante
😉