Artigo | O cinema de Mike Flanagan: Terror sensível

Se eu fosse descrever o trabalho de Mike Flanagan em uma frase seria: “um diretor que sabe fazer terror.”

Meu primeiro contato com o cineasta foi na Netflix, com a excelente série A Maldição da Residência Hill (The Haunting of Hill House – 2018), que ganhou nota 8,6 no IMDB e 93% de aprovação no Rotten Tomatoes. Tendo dessa forma me cativado e sendo idólatra do gênero horror, passei a prestar atenção nele.

E eis que no ano seguinte, Flanagan aparece no cinema com seu Doutor Sono (Doctor Sleep2019), filme baseado na obra literária homônima de Stephen King e sequência do famoso O Iluminado (The Shining – 1980), consagrado em sua versão cinematográfica por Stanley Kubrick. E em 2020, o diretor estreia novamente no streaming com a sequência independente de sua consagrada série, A Maldição da Mansão Bly (The Haunting of Bly Manor – 2020). Foi o que bastou para me tornar fã.

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Mike Flanagan

Em razão disso, resolvi assistir a toda a filmografia do cineasta para entender o motivo de suas histórias me agradarem tanto e, tendo cumprido a missão, agora escrevo o presente texto para compartilhar com os leitores as minhas impressões.

Flanagan nasceu em Salem, Massachusetts e, mesmo tendo vivido pouco tempo ali, tal experiência deixou uma profunda impressão em sua mente. O interesse permanente nos julgamentos das bruxas de Salem e tópicos associados só cresceu e até hoje influenciam seu trabalho.

Assim, tendo lançado oito obras do gênero terror no mercado, considerando Absentia (2011) como a primeira, Flanagan chamou minha atenção principalmente pela sensibilidade com que trata o tema que, por natureza, deveria causar medo e/ou ojeriza. É claro que muitas de suas produções são baseadas em trabalhos de outras pessoas, como já mencionado acima, mas sou da linha que acredita que, mesmo que o texto utilizado para a realização de um filme não seja originalmente do diretor de cinema, quando ele assume a tarefa de produzir uma versão dele para o cinema, torna-se autor de uma composição só sua, algo único e inédito que merece olhar próprio e especial.

Dessa maneira, foi por isso que me apaixonei pelo estilo do diretor em Doutor Sono, uma das pouquíssimas histórias em que a versão fílmica me agrada mais do que a literária (que Stephen King me perdoe!).

Porém, Flanagan também é conhecido por escrever seus próprios roteiros, como fez com Hush: A Morte Ouve (Hush2016), por exemplo, em co-autoria com sua atual mulher, a atriz Kate Siegel, que também protagoniza o filme.

Hush, aliás, é um caso à parte, um bom filme e um dos únicos em que o diretor não trabalha com crianças, que são um ponto alto em suas obras. O maior triunfo da película, porém, é o pouquíssimo tempo de diálogo que possui (menos de 15 minutos dentro de 1 hora e 20 de duração). Como Maddie, a personagem de Siegel é surda, somos levados em vários momentos para seu mundo silencioso, mas o filme está longe de ser mudo apesar das poucas falas.

Muito talentosa, Siegel carrega nas costas a produção (toda pensada durante um jantar em 2014 e filmada em apenas 18 dias) que também não possui muitos personagens. Difícil imaginar que o filme seja bom, mas não se engane. Apesar de não ser a melhor obra de Flanagan, prende a atenção do espectador do começo ao fim. Hush é uma película simples, mas muito bem feita, que sabe usar muito bem o som ambiente para compensar a mudez da personagem principal. A presença de um assassino sem qualquer motivação de background também é um detalhe que intriga, mas não atrapalha a experiência cinematográfica.

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Kate Siegel em Hush: A Morte Ouve

Ademais, defendo o fato de que esse filme é o primeiro em que o cineasta consegue de fato trazer empatia a seus personagens, coisa que não acontece em Absentia e O Espelho (Oculus – 2013). A propósito, se quiserem conhecer a filmografia de Flanagan, não comecem por essas duas produções, ou então não irão prosseguir.

Absentia é um filme fraco apesar do bom trabalho das protagonistas Katie Parker e Courtney Bell (com quem o diretor teve um relacionamento e possui um filho). Chamo a atenção aqui para a irritante trilha sonora, que, nesse caso, me desagradou muito. Mesmo assim, a película já introduz uma personagem importantíssima em toda a obra do cineasta: as casas em que a maior e mais importante parte da ação acontece. Em todos os filmes de Flanagan, a casa é uma figura central, um ícone sem o qual a história não poderia existir. Vejam os nomes de seus últimos trabalhos, A Maldição da Residência Hill e A Maldição da Mansão Bly e percebam o que estou dizendo.

Mesmo em Absentia, em que um túnel chama mais a atenção do que a casa em si, ela também tem um papel muito importante. Nesse filme, também não há crianças, elas serão introduzidas no filme seguinte do diretor, O Espelho, pulam Hush e depois seguem firmes até o último lançamento.

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Katie Parker em Absentia

Como o próprio nome diz, O Espelho gira em torno desse objeto que, na história, vai afetar profundamente a vida de uma família que havia acabado de se mudar para sua nova casa. A personagem principal, Kaylie (Karen Gillan) cresceu obcecada em provar para o mundo que o espelho que adornava a parede do escritório de seu pai tinha algum tipo de maldição.

Como dito, nesse longa Flanagan começa a trabalhar com as crianças, e Annalise Basso e Garrett Ryan mostraram a que vieram interpretando Kaylie e seu irmão Tim (Brenton Thwaites), mais jovens. Porém, sendo apenas o segundo filme do cineasta, O Espelho ainda é fraco em questão de roteiro, uma história até meio cansativa, para dizer a verdade. Parece estar sempre a ponto de engatar a segunda marcha, mas termina antes disso. No entanto, já é capaz demonstrar o potencial que o diretor viria a adquirir.

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Karen Gillan e Brenton Thwaites em O Espelho

Passando por Hush, sobre o qual já comentei, chegamos então a uma de minhas obras favoritas, O Sono da Morte (Before I Wake – 2016). Estamos cinco anos depois do lançamento de Absentia, e o crescimento de Flanagan é visível. Ao contrário de todos os filmes anteriores, O Sono da Morte, em minha opinião, é perfeito, em todos os aspectos, tanto objetivo como subjetivo.

Ele conta a história de Cody, vivido pelo talento até então mirim, Jacob Tremblay, do aclamado O Quarto de Jack (The Room – 2015), um garotinho dócil que tem a capacidade de tornar físicos os seus sonhos. Órfão, ele vai passando de casa em casa até perceber que era a causa das coisas estranhas que aconteciam em cada novo lar que ganhava. Mas um dia, ele é adotado por um casal que havia acabado de perder seu próprio filho.

O Sono da Morte é classificado como horror, mas acertadamente, também é anunciado como drama e fantasia, sendo mais sensível e bonito do que muitos outros filmes com a mesma pretensão. O roteiro incrível é elevado à terceira potência pelas atuações simplesmente incríveis de Tremblay e Kate Bosworth, que interpreta Jessie, a nova mãe adotiva de Cody. Apesar da carreira extensa e de já tê-la visto atuar antes como Louis Lane em Superman: O Retorno (Superman Returns 2006), só fui me dar conta do talento da atriz na série The I-Land, uma das piores produções da Netflix. Bosworth, no entanto, é a única coisa boa da obra, brilhando como uma supernova perto de todo o resto.Em O Sono da Morte não foi diferente. Eu poderia vê-la atuando ao lado de Tremblay por horas a fio e não me cansaria.

Flanagan ainda faria mais três longas depois desse filme, mas só alcançaria sua sensibilidade e humanidade novamente agora em 2020, com A Maldição da Mansão Bly. Ouso dizer até que O Sono da Morte está bem no topo da minha lista de obras favoritas.

mike flanagan Kate Bosworth e Jacob Tremblay
Kate Bosworth e Jacob Tremblay em O Sono da Morte

Chegamos então à terceira película de Flanagan lançada em 2016: Ouija: Origem do Mal. Não vou me demorar aqui, porque não há necessidade. Basta dizer que esse filme é bem ruim, mesmo que tenha mais uma criança prodígio (Lulu Wilson, como Doris) chamando a atenção. Uma curiosidade é que a protagonista, Elizabeth Reaser (a Esme da saga Crepúsculo (Twilight2008-2012)) voltaria a trabalhar com o diretor em A Maldição da Residência Hill.

Já em 2017, Flanagan lançou Jogo Perigoso (Gerald’s Game), talvez o mais psicológico de seus filmes. Essa é uma obra que, apesar de aparentar ser parada, tem uma dinâmica muito interessante que prende a atenção do espectador até o fim. Tem uma grande cota de visceralidade e conta com a excelente atuação de Carla Gugino, que também volta a trabalhar com o cineasta em A Maldição da Mansão Bly.

No enredo, um casal de isola em uma casa afastada para dar uma “apimentada” em sua relação, mas o marido morre inesperadamente, deixando a mulher algemada na cama. Ela agora terá que lutar para sobreviver.

Jogo Perigoso também é classificado como terror, mas como dito, tem a marca de Flanagan, sua capacidade de abrandar o que a primeira vista é horrível, de trabalhar o medo de um modo único.

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Carla Gugino e Bruce Greenwood em Jogo Perigoso

E veio 2018, e com ele, mais um filme de Flanagan. Doutor Sono (Doctor Sleep), é para mim um ícone, já que, como referido, é uma das raríssimas obras cinematográficas que considero melhor que a versão literária, mesmo que esta seja do gênio Stephen King. A belíssima atuação de Rebecca Ferguson como Rose Cartola e o carisma de Ewan McGregor como Dan Torrance talvez tenham sido grandes diferenciais, mas que a pedra de toque foi a visão do diretor não há qualquer dúvida.

Apesar de não se parecer fisicamente com um monstro (pelo contrário, possui o rosto lindo de Ferguson), Rose Cartola tornou-se, nas mãos de Flanagan, um daqueles vilões que, para usar um clichê, amamos odiar. Que vilã ela é! Quem não conhece a Cartola, não sabe o que é o mal.

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Rebecca Ferguson como Rose Cartola em Doutor Sono

E finalmente, chegamos nas obras-primas do diretor, sua agora antologia da Netflix A Maldição da Residência Hill e A Maldição da Mansão Bly. Posso dizer sem medo de errar que, com essas obras, o cineasta está em seu auge e tornou-se impossível de ser ignorado, principalmente para os amantes do cinema de gênero. Com absoluta firmeza, afirmo que até aqueles que não apreciam horror se sensibilizariam diante do poder de Mike Flanagan.

Não vou me alongar mais, até porque essas duas obras merecem seus textos próprios, e a minha análise sobre A Maldição da Mansão Bly já está disponível.

Sendo assim, me despeço com a certeza de que conheci a obra de um excelente diretor que, sendo jovem, ainda tem muito o que mostrar. Agora, apresento-o a quem ainda não o conhece e deixo aqui a minha recomendação enquanto espero seus próximos trabalhos. Midnight Mass vem aí. E promete.

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