Salieri pode não ter matado Mozart, mas Pushkin matou Salieri, Peter Shaffer exumou o cadáver e Milos Forman filmou todo o processo.
Amadeus é um filme estadunidense de 1984 dirigido por Milos Forman. É baseado na peça de Peter Shaffer, que por sua vez é baseado no drama poético Mozart e Salieri do autor Alexander Pushkin. É uma interessante adaptação romanceada da vida de Mozart, suas relações pessoais (principalmente com o também compositor Salieri), excessos e sua arte.
O filme se passa no império Austríaco do Século XVIII, terra de efervescência cultural, durante a crise do Antigo Regime. A história é contada em flashback, partindo de um ponto no futuro, em que um idoso Antônio Salieri (F. Murray Abraham), conta seu complicado relacionamento com o jovem Wolfgang Amadeus Mozart (Tom Hulce).
Os dois personagens são perfeitos opostos: Salieri é celibatário, sério, teve um início tardio na carreira, é um italiano temente a Deus e às autoridades. Mozart, por outro lado, é jovem, adora piadas escatológicas, é uma estrela desde que era criança e é um austríaco indolente. Os dois acabam envolvidos em intrigas palacianas, em busca do prestígio do imperador José II (Jeffrey Jones). O fato de serem opostos é o que mobiliza a trama, uma vez que, constantemente seus interesses se posicionam em um antagonismo em busca de um objetivo em comum: o sucesso. Essa rivalidade, que na tela se torna a força motriz do enredo, não existiu na vida real.
Pode parecer a princípio um desvio do assunto, mas quem escreve esse texto que você está lendo, é um historiador de formação. Isso quer dizer, que automaticamente o primeiro pensamento que poderia surgir ao assistir Amadeus seria o desconforto pela dramatização excessiva de uma história. Porém, assim como qualquer uma das outras artes, posta sob o prisma de uma análise (mesmo que seja uma análise historiográfica), o cinema é um documento.
Ora, mas mesmo não sendo retrato fiel da história, esse filme ainda é um documento? Sim! Historicamente, grandes rivalidades mobilizam grandes histórias. No cinema, apenas de exemplos recentes como a disputa (e tensão sexual elevadíssima) de Rivais (Challengers, 2024), as disputas efervescentes de Rush, no Limite da Emoção (Rush, 2013), o desafio de lidar com seus dilemas pra atingir seu máximo (e passar por cima dos concorrentes) como em Eu, Tonya (I, Tonya, 2017) e por aí vai…
O que Pushkin fez, dois anos após a morte de Salieri, foi criar um interessante dilema: Salieri é brilhante, claro, mas seu brilhantismo se dá por uma decisão de se dedicar exclusivamente a arte. O talento de Mozart, por outro lado, apesar de concentrar semelhante dedicação, não precisa de muito mais do que um lampejo, um momento e pode ser “desperdiçado” com bebedeiras, farras e galhofas. Salieri portanto se pergunta o tempo todo o porque Deus daria tanto talento a esse rapaz e não a ele que vive todos os dias o esforço e a dedicação da arte.
É aí que entra a ideia de Shaffer e principalmente a de Forman de transformar essa relação, não apenas numa obra sobre a rivalidade, mas sobre uma reflexão da arte, do ponto de vista do artista. Todo aspirante a produtor de arte, já se perguntou até onde vai a linha que separa talento de esforço. Essa linha é o que separa a mediocridade da excelência. Quem define esse parâmetro, infelizmente, não é a sensibilidade de quem produz arte, não atoa nenhum artista que se preze, se vê satisfeito com sua própria obra em inteireza. A definição do parâmetro é de quem financia, quem exibe e quem divulga o trabalho, trazendo o reconhecimento a quem faz tal esforço.
No filme, é a nobreza – a classe dominante da época – quem define a escolha das obras que serão executadas, quem gozará de prestígio em uma Viena cosmopolita. Salieri vê sua posição de compositor oficial do imperador pelo talento avassalador de Mozart, o que lentamente o leva a se ver como alguém medíocre, que inclusive termina seus dias preso a essa mediocridade, enlouquecendo aos poucos e sozinho, enquanto o austríaco morreu jovem e louco de uma vez, como um grande talento, deixando esposa (Elizabeth Berridge), filho e obra como legado.
É possível perceber, portanto, que faz pouca diferença a época que essa experiência está colocada, por isso é possível observar que a fidelidade histórica não é o compromisso de Amadeus. Experimente tirar as personalidades reais da sala e imagine a seguinte história: Um jovem artista, vive em excessos de bebida e de um certo pó, avassala uma comunidade e eclipsa um artista que antes dominava esse circuito, ao ponto que este enlouquece e arma um plano para matar o primeiro. É uma narrativa atemporal, no sentido clássico dessa palavra. O que muda talvez, de lá para cá, é o pó, que na Viena do século XVIII é o rapé.
O que Forman faz com essas questões é nos fazer refletir, por meio das imagens e da trilha fortíssima recheada dos clássicos de Mozart, que todos nós tentamos também sair da mediocridade, tentamos sempre o máximo, a beira da loucura, para alcançar certos padrões que são impossíveis, que dependem muito mais do que do nosso próprio esforço, por mais que seja dito para nós que é possível chegar lá.
Amadeus é uma obra intrigante e divertida, pelos seus personagens que encarnam seus dilemas de forma magistral. A risada jocosa do Mozart de Hulce é tão marcante, que praticamente se tornou, com o passar dos anos, uma marca registrada dessa personagem. É uma experiência excelente de compreensão do cinema enquanto um resumo (portanto, um documento) sobre emoções mais complexas e das relações mais profundas entre os seres humanos, desde que o mundo é mundo.
Ao fim e ao cabo, para o Salieri da vida real, sobrou lidar com a história de que ele era um assassino, que se livrou de seu rival por se ver preso na própria mediocridade. Apenas depois do filme de Forman é que suas obras passaram a ser revisitadas e sua relação com Mozart (que mantém-se imaculado até hoje, como o próprio filme o descreve) melhor compreendida. Para o Antônio Salieri do filme, sobra apenas a benção, como um santo padroeiro dos medíocres. A todos, que tentamos ser a melhor versão de nós naquilo que gostamos de fazer, cabe aceitar, ou não essa dádiva irônica.
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Do caralho
Yeaaah 🤟