Rivais

Escândalo íntimo. Rivais utiliza um esporte para trazer ao cinema mainstream uma sensualidade que estava em falta.

Esporte é, na frieza da definição, uma atividade coletiva ou individual, com intuito competitivo, gerenciado por um conjunto de regras. Obviamente, não se trata de algo hermético, existindo, também, o aspecto lúdico e o narrativo. Um esporte é a soma dos acontecimentos dentro mas também fora de seus locais de ocorrência. Esses elementos tornam o campo esportivo um prato cheio para o cinema trabalhar as infinitas possibilidades dramáticas e as histórias que surgem organicamente nos maiores e menores torneios possíveis.

O que o roteiro de Justin Kuritzkes em Rivais propõe é transformar uma das mais insignificantes partidas na carreira de dois tenistas no maior evento de suas vidas. Para isso acontecer, iniciamos o filme em 2019, numa final de “Challengers”, um tipo de torneio furreca, patrocinado por uma empresa local de pneus, em New Rochelle, Nova Iorque. Nele, o multicampeão Art Donaldson (Mike Faist) enfrenta na final Patrick Zweig (Josh O’Connor), tenista de carreira decepcionante. O grande truque de Kuritzkes é começar pelo final e, ao longo do filme, atribuir sentido aos elementos já dispostos, voltando no tempo.

Particularmente, interesso-me pouco por estes gimmicks, ainda mais que Luca Guadagnino é um diretor muito capaz de ilustrar a internalização de suas personagens. Quando Art aparece para essa partida ao lado de sua esposa, é nítido, sem palavra alguma ser pronunciada, que ele simplesmente não está a fim de jogar o jogo. Voltando no tempo, 2006, descobrimos os motivos.

Art e Patrick foram, por diversos anos, melhores amigos, a dupla Gelo e Fogo, até que conheceram Tashi (Zendaya), prodígio do tênis que rapidamente captura a atenção de ambos. Na primeira interação dos três, em um evento organizado pela adidas para celebrar a jovem tenista, o trio vai à praia e conversam por alguns minutos, e aqui já dá pra ver a seguinte dinâmica: uma competição nem-tão-velada-assim pelo coração da morena, com duas personalidades distintas disputando uma guerra particular. Tashi logo diz que não quer ser uma destruidora de lares.

Após esse encontro, um novo é marcado, agora no quarto dos meninos, no qual eles compartilham uma esquisitíssima história de quando um ensinou o outro a se masturbar, denotando a profunda intimidade que intriga Tashi. Quando a cerveja acaba, ela senta na cama, chama ambos para sentarem-se ao seu lado e começa a beijá-los, primeiro individualmente, e depois num beijo triplo que de início os meninos estranham, mas sendo induzidos por Tashi, vão fundo, ela se afasta e apenas observa, como uma arquiteta do mal, a construção que criara.

Uma das coisas mais interessantes, olhando de fora, sobre o tênis, é que cada jogador possui suas idiossincrasias. Há uma famosa história de quando André Agassi, um dos maiores tenistas da história, estava estudando seu próximo adversário, Benjamin Becker, um dos melhores sacadores daqueles tempos, e alguém que havia vencido as três primeiras contra Agassi, que percebeu algo: toda vez que Becker estava prestes a sacar, ele colocava a língua pra fora. Se a língua estivesse no meio dos lábios, Becker sacaria no meio da quadra ou no corpo do adversário, se a língua estivesse no canto do lábio, o saque era aberto, no canto da quadra. 

Depois dessa descoberta, Agassi venceu os próximos dez confrontos contra Becker. Uma freguesia que só foi explicada quando os dois se aposentaram e se encontraram em uma Oktoberfest, na qual Agassi indagou “você ainda faz aquilo com a boca quando vai sacar?” e Becker caiu no chão de susto. O alemão diz que chegava em casa, depois da dezena de derrotas seguidas que sofrera, e desabafava com a mulher, falando “Ele está lendo minha mente! Sabe exatamente onde colocarei a bola!”.

Essa história denota o quão tênis é sobre conhecer, entender e decifrar o seu adversário. Um jogo muito íntimo e, para sustentar essa ideia, o filme mergulha na convivência de um casal e dois ex-amigos. Apoia-se nas grandes atuações dos três protagonistas e na capacidade de Guadagnino de arrancar significados de pequenas ações. O estilo de saque de um dos tenistas é utilizado como o trejeito que vai comunicar um acontecimento sem utilizar palavras, dentro da quadra; para denotar o tédio de Tashi durante a partida final, a cabeça dela para de acompanhar a trajetória da bola de um lado para o outro, enquanto o resto do público a persegue com voracidade.

E na dialética entre o passado e o futuro, as peças são dispostas e compreendidas quando o filme avança ao voltar no tempo. Quando Tashi sofre uma lesão que a impede de competir, compreendemos por qual motivo ela é treinadora e não a melhor jogadora de tênis do mundo. E essa escolha não funciona apenas para criar um ressentimento na personagem, o papel de treinadora tem tudo a ver com a personalidade disposta em tela. Inteligente, articulada, tática, mandona e subjugadora. 

Essas características são exatamente as que fazem com que seu marido, Art, tenha alcançado um nível de excelência – e, consequentemente, subserviência à ela – e Patrick tenha ficado no meio do caminho. A recusa do aprimoramento e aposta apenas no próprio talento torna Zweig um potencial desperdiçado. O filme faz questão de mostrá-lo como um retumbante fracasso, que pede adiantamento de pagamentos irrisórios para comer e basicamente se autocafetina no Tinder para ter onde dormir. Enquanto Art transborda sua infelicidade com o estágio atual da vida, explicitamente dizendo que tem de jogar por ele e por ela.

Provável que o mais celebrado do filme seja o seu quebra-cabeça temporal, mas o valor da obra está na imersão da intimidade desses três, nos seus desejos e pensamentos. Na traição em Atlanta ou na calada da noite anterior à partida principal, no toque de um amigo na perna do outro, que a câmera faz questão de sublinhar, na psiquê de um atleta que não aguenta mais praticar o esporte, em todas as situações reside um carinho pelos gestos, pelas expressões corporais, as desavenças que existem com uns corpos e afeição que vai ter por outro.

O tênis, muitas vezes, fica em segundo plano, mas no último momento, em que o foco está na batalha final, Guadagnino entra em um frenesi visual em que há planos ponto de vista dos jogadores, que logo remetem à uma estética de videogame, e em seguida planos ponto de vista da própria bola, sendo rebatida e tendo seu eixo revirado com o impacto das raquetes. Uma forma minimamente criativa de retratar um esporte que, o próprio diretor disse em entrevista, não gostar de assistir por achar chato.

Rivais é um filme sexy, divertido e fresco, que às vezes se apaixona demais pelo seu malabarismo estrutural, mas acerta mesmo quando vai fundo na representação dos interiores de suas personagens, e, utilizando um esporte, consegue transmitir uma sensualidade que estava em falta no cinema mainstream.

Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Nota do(a) autor(a)

3,5/5
3,5
Rivais Poster
Rivais
7.7
Título original:
Challengers
Ano:
2024
País:
EUA
Idioma:
Inglês
Duração:
131 min
Gênero:
Comédia, Drama, Esporte
Diretor(a):
Luca Guadagnino
Atores:
Zendaya, Mike Faist, Josh O’Connor

Você também pode gostar