Crítica | Farrapo Humano (1945)

O bêbado, de forma geral, sempre foi retratado de três formas no cinema dominante: o alívio cômico, que é sidekick do protagonista – algo muito presente em filmes de Hollywood da década de 40 – um exemplo claro é o personagem de Walter Brennan em um longa lançado apenas um ano antes, Uma aventura na Martinica (To Have and Have Not, 1944) de Howard Hawks; ou a pessoa que dissolve seus valores morais e religiosos na bebida, acabando com uma irremediável culpa puritana – exemplo: A Carruagem Fantasma (Körkarlen, 1921) -; ou como o vilão sem escrúpulos – exemplo: Lírio Partido (Broken Blossoms, 1919).

 Essa é uma das razões pela qual Farrapo Humano (The Lost Weekend, 1945) foi tão marcante quando abordou de forma tão crua e direta o tema do alcoolismo. A direção de Wilder não ironiza a situação do personagem principal, muito menos vilaniza suas ações… Acompanhamos (com um grau de realismo pouco visto até então no cinema americano) um homem bom perdido no fundo do poço. O longa narra a trajetória dilacerante de um talentoso escritor vencido por sua dependência. Nada de engraçado ou medonho… apenas triste.

Muito se é dito sobre os roteiros de Billy Wilder, que de fato, junto ao seu parceiro Charles Brackett, marcaram época em Hollywood com uma filmografia invejável. Mas também é verdade que além de excelente roteirista, Wilder também era um bom diretor. Apesar de orquestrar sua mise-en-scène satisfatoriamente em outros de seus filmes, é aqui que o aspecto visual é potencializado de forma mais proeminente.

O filme tem início com o protagonista Don Birnam (Ray Milland) fazendo as malas para o tal final de semana referido no título original, porém, a verdade é que, longe do foco na organização das roupas, o olhar do homem está direcionado à garrafa de conhaque presa por uma corda na janela – conceito visual retomado na capa do último filme do diretor, Buddy Buddy (1981). 

Birnam consegue ludibriar sua namorada (Jane Wyman) e seu atento e vigilante irmão, Wick (Phillip Terry), e acaba adiando a viagem (por isso The Lost Weekend) apenas para se dedicar à sua adicção. 

A encenação e decupagem dessa cena inicial são sublimes: primeiro vemos Don se distanciando dos dois (o protagonista, defendendo seu ponto na discussão é mostrado sozinho); depois cortamos para o irmão e a namorada lado a lado, no mesmo plano. A conversa segue e o personagem interpretado por Terry realmente acha que não deve deixar Don sozinho, já que conhece seu histórico. Nesse momento Ray Milland se aproxima da câmera, saindo de um plano americano para  um plano médio, e assim podemos ver a expressão de culpa que toma o rosto do personagem – ele não está tentando tirar vantagem. Consumido por seu vício, usa de qualquer artifício hábil para conseguir o que quer.

No fim ele consegue vencer a discussão e os convence a adiarem a viagem. Sua namorada se aproxima, e eles dividem o mesmo plano enquanto ela reforça a importância da união do trio. Wick, desconfiado, é mostrado em um plano sozinho, achando que o irmão está prestes a cair na bebida de novo.

Essa cena inicial é brilhante porque estabelece de forma visual (cênica) e narrativa (diálogos) os personagens, além de dar uma ideia acanhada da trama como um todo: a história do bêbado que tem que lidar com o irmão (que já está cansado de ser enganado) e com a namorada (que parece ser a única pessoa que ainda acredita que ele tem salvação); ele está disposto a ser desonesto (apesar de se sentir mal com isso) para alcançar seu objetivo final, a bebida.

O filme começa e termina com uma pan (movimento de câmera da esquerda para a direita ou da direita para esquerda) que tem seu sentido explicitado pela narração em off de Ray Milland: aquela é só uma história sobre alcoolismo, imagine quantos por aí na “selva de concreto” convivem com o mesmo tipo de problema.

Fato é que, direta ou indiretamente, a representação do álcool no cinema hollywoodiano começaria a mudar a partir daí. Filmes como: Nasce uma Estrela (A Star Is Born, 1954); Eu Chorarei Amanhã (I’ll Cry Tomorrow, 1955), Noite de Estreia (Opening Night, 1977), entre tantos outros são exemplos. 

Porém, para concluir a crítica aqui desenvolvida, acho importante citar Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959), de Howard Hawks. Se no primeiro parágrafo citei o bêbado de Uma aventura na Martinica, o alcoólatra representado em Onde Começa o Inferno é um dos heróis, e tem sua dependência justificada. Muito mais que artifício cômico, como havia sido no longa de 1944, a ambiguidade da dependência aparece na obra do fim da década de 50, possivelmente inspirada pela dramatização de Farrapo Humano.

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Nota do(a) autor(a)

4,5/5
4,5
Farrapo humano pôster
Farrapo Humano
7,9
Título original:
The Lost Weekend
Ano:
1945
País:
EUA
Idioma:
Inglês
Duração:
101 min
Gênero:
Drama, Noir
Diretor(a):
Billy Wilder
Atores:
Ray Milland, Jane Wyman, Phillip Terry

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