Após o emblemático embate e junção de forças do filme anterior, Godzilla e Kong são novamente separados e precisam seguir com suas respectivas vidas. Aqui, nesta sequência, acompanhamos o macaco bem de perto, sendo realocado para a Terra Oca e tentando se estabelecer em seu novo lar.
O filme enxuga bastante o elenco em relação ao seu antecedente, o que faz sentido, já que os seres humanos são a pior coisa de longe. Retornam poucos personagens e os novos também não possuem tanto destaque. É um filme claramente protagonizado por Kong e acompanhado pelo ponto de vista dele.
E graças ao Kong-centrismo da obra, é admirável o esmero de Adam Wingard com o manuseio dos Titãs. Desde o filme anterior, Kong é retratado como um monstro muito bom em ataques corpo-a-corpo e é denotado com um apreço muito grande por desmembramento. Apesar de perder a luta para Godzilla, os melhores momentos do macaco são quando está bem próximo de seu oponente, principalmente quando desfere socos a curta distância. Essa ideia se mantém e é expandida neste segundo filme, com o arquétipo boxeador de Kong sendo elevado graças a luva que recebe após machucar o punho, e ainda em momentos em que levanta a guarda, movimento muito característico da luta.
Essa busca por uma idiossincrasia dos animais gigantes é um dos maiores méritos do filme, sendo um ideal puramente cinematográfico a capacidade de construir identidade, fisicalidade e moralidade apenas com ações e gestos das personagens. O vilão do filme, Skar King, é a oposição perfeita a Kong em diversos níveis. Primeiro, seu corpo. Possui braços muito longos, conferindo-lhe uma poderosa envergadura. Sua arma é uma espécie de corrente feita com a coluna vertebral de outro animal. Isso significa que Skar é um mestre em combate a média e longa distância, em oposição ao mano-a-mano curto de Kong. Todas essas escolhas, da anatomia à ferramenta, dizem tudo que precisamos saber sobre a personalidade de Skar, sem que uma única sílaba precise ser dita.
Por outro lado, Godzilla fica cada vez mais unilateral e inacessível. A ideia, em todos os filmes da Legendary, é realmente vê-lo de forma distante, que só aparece quando precisa, para fazer o trabalho sujo para a humanidade. Adam Wingard ainda tenta conferi-lo um aspecto mais animalesco e menos monstruoso, mostrando-o recolhido e descansando no Coliseu, em Roma, como um gatinho. Porém, não sei até que ponto esse distanciamento não lhe concede uma visão puramente bélica e, no final das contas, menos interessante que a de Kong.
Os humanos são, novamente, a pior coisa do filme. Porém, o diretor não esconde isso de forma alguma. Todas as interações são bem aceleradas e o ritmo é imbecil mesmo, interessando-se muito pouco pelo que as pessoas têm a oferecer. Até tem um subtexto rolando sobre a curiosidade humana e o quanto há de se interferir, se a vontade de descobrir é, em certa medida, destrutiva, mas tudo fica em segundo plano perante o carinho que existe na disposição dos monstros em tela.
O filme se difere dos primeiros dois sobre o Godzilla, principalmente, no tom. As obras de Gareth Edwards e Michael Dougherty são sombrias tematicamente e escuras visualmente, filmes sérios e sóbrios. A ação dos monstros é sempre embrulhada pela noite, por chuvas, como se escondesse os acontecimentos para criar uma suposta tensão. Wingard está numa veia completamente distinta. Visualmente, muito da ação acontece ao dia, em cidades ensolaradas, como Cairo e Cádiz.
Narrativamente, o filme está sempre à beira da insanidade, adicionando coisas que teoricamente são desconexas mas, dentro da abordagem do filme, funcionam. Telepatia, profecias e tecnologias são batidas no liquidificador e saem num maço de loucura colorida. Não tem vergonha de ser galhofa, de abraçar a fantasia, de sempre dobrar a aposta e mexer, inclusive, com o visual clássico das personagens-título, usando uma versão rosa de Godzilla.
E se Godzilla é o protetor da humanidade e o mantenedor da ordem e equilíbrio do planeta, é muito simbólico que o filme termine na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Principalmente na localidade, a Zona Sul, lugar que foi famosamente aterrado para a urbanização e verticalização do município, além de ser uma espécie de símbolo de desequilíbrio graças à concentração de riqueza e alto padrão, enquanto na parte “de trás” existem favelas e condições precárias de vida, um espaço que o estado abdica e por vezes tenta esconder.
A destruição inerente à simples presença de Godzilla pune uma das cidades mais desiguais do mundo. Como carioca da gema e suburbano, é impossível não ser tocado pelas imagens de um lagarto rosa gigante demolindo aquilo que é ao mesmo tempo objeto de desejo e a gênese de alguns males da cidade que tanto amo. Para um filme que se dispõe a ser cada vez mais insano a cada segundo que passa, ele só poderia desaguar em um dos lugares mais bonitos e malucos do planeta Terra.