Crítica | Quando o ‘Gosto de Cereja’ não é doce

A obra prima minimalista do iraniano Abbas Kiarostami é considerada um dos melhores filmes da história!

Gosto de Cereja, filme vencedor da Palma de Ouro do ano de 1997, começa com uma cena simples e direta: uma câmera estática dentro de um carro mostra um indivíduo dirigindo; ele diminui a velocidade e é questionado por inúmeros homens se está em busca de trabalhadores. 

A própria condição que o diretor nos coloca no primeiro minuto de filme já é de um desconforto social ímpar, em que o simples fato do personagem ter um carro em meio a uma crise explícita já ilustra uma condição financeira suficiente para que o dito cujo seja empregador, não empregado.

Pelos primeiros minutos de filme a câmera permanece dentro do carro e somos convidados a conhecer um pouco mais do mundo composto pelo diretor Abbas Kiarostami. Existe certo nível de curiosidade vindo do motorista, ele parece estar procurando por algo (ou alguém), prestando atenção em cada detalhe, sem pressa para chegar ao seu destino (se é que tem algum).

E assim somos apresentados ao protagonista desse filme: de forma sutil, direta e não-verbal. O personagem principal é um homem mais rico que a média, desocupado e deprimido, que busca alguém para fazer alguma coisa.

Como descobriremos ao decorrer da narrativa, Gosto de Cereja conta a história de Mr. Badii (Homayoun Ershadi), um homem que dirige seu carro nos subúrbios de Teerão, capital do Irã, em busca de alguém que o enterre em segredo debaixo de uma cerejeira, após ele cometer suicídio.

Existe uma possível leitura política desse filme se tratando da luta contra a censura do governo iraniano e identificou-se em várias produções relacionadas a esse longa (um exemplo é o texto de Raphael Mesquita para a revista de cinema Contracampo) a metáfora do carro como uma ligação entre o universo público e privado.

O protagonista dirige pelas vias públicas da circunvizinhança da cidade enquanto busca pessoas para satisfazer seu desejo privado (tirar sua própria vida, mas algumas interpretações o examinam como uma metáfora pela busca de um romance homo afetivo). Ficaria implícito então que em um país que oprime as liberdades individuais, a busca por apoio ou satisfação seria algo a se procurar às escondidas. Dá pra dizer que, de fato, muito mais que buscar por um coveiro indiferente, Mr. Badii busca por uma companhia que compartilhe de sua angústia, que apoie sua escolha.

A “falta de motivação” aparente na busca pelo suicídio também é uma constante crítica de alguns textos desde o período do lançamento. Deixo aqui então meu desagrado por essa busca rasa. Um realizador não precisa sempre deixar explícito a motivação dos personagens, isso não é uma regra, não existem regras na arte. Nesse caso, decidir por algo tão extremo como tirar sua própria vida é algo tão tragicamente dramático que talvez nem mesmo tenha de fato uma motivação única. Trata-se de uma busca desnecessária por uma motivação força motriz.

Em sua busca por um cúmplice, Badii acaba recrutando Mr. Bagheri (Abdolrahman Bagheri) um taxidermista que está disposto a ajudar porque precisa do dinheiro para seu filho doente.

O final traz uma ambiguidade poética, uma espécie de anfibologia cinemática: Kiarostami reconhece não apenas o potencial do cinema, mas suas limitações. Se na primeira cena somos convidados a conhecer o mundo diegético do filme, na última temos um rompimento absoluto com essa mesma diegese, ao mostrar a equipe de filmagem na locação.

O diretor constrói o universo fabular através da potência do aparato cinematográfico apenas para delinquir esse efeito janela ao reconhecer a limitação da representação artística. Nessa antinomia, Abbas Kiarostami edifica um personagem que fala da vida ao pensar sobre a morte. 

O gosto de cereja pode ser doce, mas nesse caso foi amargo.

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Nota do(a) autor(a)

/5
Gosto de Cereja Poster
Título original:
Ano:
1997
País:
Irã
Idioma:
Persa
Duração:
95min min
Gênero:
Drama
Diretor(a):
Atores:
Homayoun Ershadi, Abdolrahman Bagheri

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