Crítica de filme

Keteke

Publicado 1 dia atrás
Nota do(a) autor(a): 4

Keteke é um filme ganês dirigido por Peter Sedufia e lançado em 2017 que acompanha as desventuras de um casal: Boi (Adjetey Anang) e Atswei (Lydia Forson). Eles arrumam várias confusões após perderem o trem que os levaria para casa. O enredo é aparentemente simples, mas carrega em si uma experiência ao mesmo tempo leve, divertida e profunda.

Com as revoluções da década de 1960 (desde as políticas, como a cubana ou a tcheca, até as culturais, como a New Hollywood, a revolução sexual e o movimento hippie), tentou-se criar uma linguagem cinematográfica própria de determinadas identidades. Historicamente, a linguagem do cinema tende a ser universalizante. Dentro de suas convenções tenta ao menos ser universalizada pela sociedade, como tentei explicar no início de minha crítica de O Melhor Amigo.

É nesse período, portanto, que realizadores ao redor do mundo em países desenvolvidos, mas sobretudo nos subdesenvolvidos, buscam formas de transmitir suas identidades por meio da cultura de massa. Essa transmissão permitiria que a voz do marginalizado fosse também ouvida. Escuta essa, não segundo o molde do opressor, mas com uma forma própria, reconhecível mesmo para quem ainda não se percebeu subalternizado. Alguns preferem chamar isso de contracultura, mas, passados quase cinquenta anos, essa ideia se transformou a tal ponto que se tornou uma cultura em si.

Quem lê atualmente os verborrágicos e incendiários textos de Glauber Rocha, escritos no fim da década de 1960, verá que ele provoca o leitor (crítico e, eventualmente, cineasta). Essa provocação o incita a assumir, do ponto de vista estético aquilo que nos identifica frente ao outro (padronizado e universalizado como norma).

Não é uma ideia original. Ao mesmo tempo em que Rocha afirma que nossa diferença está na violência e na fome. Não por opção, mas por serem tristes marcas do cotidiano do chamado Terceiro Mundo. Frantz Fanon diz o mesmo em Os Condenados da Terra. José Carlos Schwarz canta isso durante a colonização portuguesa na Guiné-Bissau. Ousmane Sembène evoca tais elementos no cinema do novo Senegal. Fora dos países do sul global, Dennis Hopper o faz em Easy Rider, como retrato fiel da inconformidade da juventude estadunidense nos anos 1960.

Mas por que preciso voltar tanto no tempo para falar de um filme tão recente? A ideia de um cinema nacional, de um cinema LGBTQIAP+, de um cinema negro ou africano parte não de um termo esvaziado como “identitarismo”. Mais que “lacração”, é uma abordagem herdeira da tradição de cinquenta anos atrás: evocar o que é nosso como algo possível de ser representado na tela do cinema.

Keteke carrega essa ideia estética. Traz elementos comuns a outros filmes produzidos no continente africano como um todo. Ao mesmo tempo, mostra traços que são tributários do cinema realizado por diretores negros de todo o mundo. Ainda que conte uma história simples, ela se desdobra por meio de mitos locais e por um humor bizarro, quase nonsense, com toques fantásticos. Podemos encontrar isso em filmes como Sorry to Bother You (Boots Riley, 2018) ou até mesmo o aclamado Corra! (Jordan Peele, 2017).

A trama, que poderia parecer monótona, ganha ares de road movie, mesmo que os personagens pareçam não sair do lugar. No entanto, é nesse “andar em círculos” que se dá o desenvolvimento satisfatório dos personagens. Certamente, essa estrada incerta, oferece ao espectador uma jornada com começo, meio e fim, em sua duração que parece até curta ao final do caminho.

Ao mesmo tempo em que é local, trazendo referências a vivências muito específicas de uma etnia em particular entre as muitas que habitam o território ganês, Keteke demonstra um domínio seguro de tendências cinematográficas contemporâneas. Assim, transforma elementos que, em tese, seriam característicos de uma identidade restrita, em algo mais amplo, com o qual um público maior pode se identificar.

É a tese dos anos 60 sendo provada. Keteke faz sentido para brasileiros, especialmente para negros do interior do Brasil, como este que vos escreve. E não falo apenas de uma referência anedótica: tive a oportunidade de assisti-lo em um ciclo de cinema universitário. Lá, com a presença de outros afro-brasileiros e estudantes africanos de vários países, que também receberam a mensagem do filme de forma muito parecida e familiar — mesmo sem abrir mão de convenções consideradas naturais ao gênero cômico.

Por exemplo, Boi se assemelha bastante ao protagonista negro típico de comédias (como os dos filmes estadunidenses mencionados, especialmente o primeiro): calado, cômico, algo apaixonado, ostentando roupas quase setentistas e um belíssimo black power. Já Atswei representa outro estereótipo — o da mulher negra corpulenta e rabugenta — mas que carrega em si algo de sensível e até triste (até mesmo em comédias como Norbit, estrelado por Eddie Murphy é possível enxergar isso).

Esses elementos criam uma dinâmica de briga de casal quase semelhante à Commedia dell’arte. Portanto, ainda que se assemelhe a filmes locais ou negros, também lembra comédias brasileiras. Em Atswei, por exemplo, é possível enxergar algo da Nega Juju de No Gogó do Paulinho, e no vai-e-vem emocional do casal, há resquícios de Eurico e Dorinha de O Auto da Compadecida.

Apesar de ser esteticamente inteligente e, com simplicidade, entregar uma jornada divertida, nem sempre o filme consegue disfarçar o baixo orçamento. Costumo ser leniente com isso — afinal, cinema não precisa de bilhões para existir. No entanto, a limitação orçamentária pesa, especialmente no uso repetitivo da trilha sonora, que acompanha praticamente todas as cenas — engraçadas, tensas, introdutórias e finais — com pouca variação. Alguns momentos de alívio surgem quando a música, elemento simbólico central na trama, se diversifica e revela um vislumbre da rica tradição musical ganesa.

Apesar disso, Keteke é uma experiência espetacular, que ensina e contribui muito. Divertido, leve e bonito, o filme mostra que a tradição de um cinema terceiro-mundista ainda respira — e sobrevive mesmo após o fim do conceito de Terceiro Mundo.

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Keteke

Keteke
10
País: Gana
Direção: Peter Sedufia
Roteiro: Peter Sedufia
Elenco: Adjetey Anang, Lydia Forson
Idioma: Inglês

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