Dirigido por Martin Scorsese e baseado no livro “I Heard You Paint Houses” de Charles Brandt (curiosamente, este é o título que aparece nos primeiros minutos de filme), O Irlandês conta a trajetória de Frank Sheeran (Robert De Niro), um caminhoneiro que, de pequenos golpes, passa a assassino da máfia italiana nos EUA em meados dos anos 50 e seu possível envolvimento em um dos maiores casos não solucionados da história americana: o desaparecimento do líder sindical Jimmy Hoffa, em 1975.
Este evento já teve uma representação cinematográfica em Hoffa – Um Homem, Uma Lenda (1992), dirigido por Danny DeVito e estrelado por Jack Nicholson. Agora, depois de quase 10 anos em desenvolvimento devido a problemas de financiamento que só foram resolvidos com a entrada da gigante do streaming Netflix como produtora e distribuidora do filme, finalmente chegou a vez de Martin Scorsese mostrar a sua versão dos fatos.
Narrado pelo próprio personagem-título, seja em off ou falando diretamente para a câmera, acompanhamos desde o encontro com aquele que viria se tornar seu mentor e “padrinho” (perdão pela referência óbvia) nesse mundo, Russell Bufalino (Joe Pesci), passando por sua relação com Jimmy Hoffa (Al Pacino), até o fim dos seus dias, ao longo de 3 horas e meia.
Se a princípio essa longa duração poderia entediar o espectador, Scorsese é hábil ao manter a história dinâmica por todo o filme, saltando décadas para frente ou para trás em um corte, forçando o espectador a se manter sempre atento sobre quando e onde está a história. Usando pouquíssimas cartelas indicando o local ou ano da ação, Scorsese se vale de outros elementos que ajudem a situar o espectador na história, seja na maquiagem dos atores (que ora aparecem jovens, ora velhos) ou a magnífica direção de arte, que consegue recriar o estilo das décadas em decorações, carros etc.
Quanto à direção, não há como negar a maestria de Scorsese em manejar sua câmera. Evitando uma montagem cheia de cortes, ele investe em movimentos de câmeras mais longos, que às vezes parecem dançar ao redor dos personagens. A cena em que presenciamos a preparação para um assassinato em uma barbearia é um dos melhores exemplos dessa câmera fluída de Scorsese. Isso quando não opta por planos mais abertos, onde um mero movimento lateral de câmera seja para direita ou para esquerda já é suficiente para não perdermos os personagens de vista. Como já dizia aquela máxima: “menos é mais”.
Além disso, a trilha sonora serve ao mesmo tempo para comentar o que vemos na tela e nos situar na época representada com hits de décadas passadas. Em um momento, por exemplo, podemos ouvir o tema da produção franco-italiana Grisbi, Ouro Maldito (1954), que também fala da disputa entre gângsters (e não consigo deixar de pensar que foi usada como inspiração para o tema de O Poderoso Chefão, mas pode ser minha audição me traindo também).
A forma como o crime organizado é apresentada também é outro acerto de Scorsese. Sem firulas ou romantização, a máfia aqui representada é crua. As motivações são pequenas, mesquinhas até, e a violência desse mundo é mostrada quase que de forma comum pelos seus personagens. Matar alguém e fazer uma salada são ações quase que equivalentes para essas pessoas. O filme tanto sabe que o mundo em que vivem é um de violência que, ao apresentar os personagens, imediatamente se segue uma legenda informando como morreram (e não é surpresa constatar que a maioria morre assassinada). Este elemento chega a ser tão absurdo na sua naturalidade a ponto de provocar o riso em vários momentos, junto com as conversas cifradas que invariavelmente se referem a atos cruéis. O mundo de O Irlandês não permite a redenção e nem os próprios personagens a almejam.
E para representar tais homens quem melhor senão alguns dos melhores atores de sua geração? O trio principal do filme, Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci, todos septuagenários, entregam performances magistrais e diferentes entre si. Joe Pesci subverte a sua persona explosiva com uma atuação sutil, mostrando o quanto seu personagem tem as coisas sob controle. Seu poder não emana de arroubos histéricos, mas exatamente do contrário, da calma e assertividade em sua postura e voz. Al Pacino, por sua vez, é o oposto da atuação de Pesci. Seu Jimmy Hoffa grita, gesticula e repete suas falas como se estivesse constantemente em um palanque, sempre com uma energia admirável. O que nos leva à atuação de Robert De Niro. Por estar no meio desses dois extremos, seu Frank está sempre dividido entre agradar seu mentor e defender seu melhor amigo e, por mais que tente manter as aparências, De Niro nos mostra sua vulnerabilidade. Por mais que não se arrependa de suas ações, notamos o quanto isso vai acabando com sua vida.
O único ponto negativo do filme fica para a decisão de manter os atores, principalmente De Niro, representando seus personagens em diferentes épocas de suas vidas. Por mais que em alguns momentos o efeito de rejuvenescimento seja convincente, em outros fica difícil de acreditar que alguém trataria De Niro como um “garoto”. Mas isso é mero detalhe dentro dessa obra tão instigante e ambiciosa que é O Irlandês.
Por mais que continuem trabalhando e apresentando trabalhos desse calibre, a verdade é que estamos presenciando o fim de uma geração que mudou Hollywood e o cinema. Que seu legado viva para sempre em filmes como esse.