Crítica de série

Crítica | ‘Them’ assusta com horror intenso dotado de crítica social poderosa

Publicado 4 anos atrás

A arte sempre existiu para manifestar diversos aspectos da alma humana, sejam relacionados aos sentimentos abstratos ou a elementos palpáveis da vida e da psique humana. Assim sendo, como forma de retratar eventos históricos e realizar críticas sociais, as manifestações artísticas sempre foram dotadas de grande poder de informação e de reflexão.

Pensando nisso, Them, série icônica lançada pela Amazon, parte de uma proposta bastante ousada e atual. Realizar uma crítica social, a partir de um delicado retrato histórico, por meio de uma assustadora série de terror/horror, porém com o aspecto de mostrar uma realidade brutal sem filtros, mesmo que isso possa traumatizar parte do público.

Sim, antes de mais nada, Them é forte, brutal e não existe para agradar todos os públicos. Com cenas de violência gráfica – mas com pouco gore -, e momentos extremamente perturbadores, o seriado vem para ilustrar momentos históricos reais, demonstrando com seus recursos, o desespero vivido por pessoas em situações de vulnerabilidade. No caso, pessoas pretas sendo oprimidas pelos brancos racistas.

Them Lucky e Emory
Them / 2021 © Cortesia Amazon Studios

A série acompanha a história de uma família que após terem sofrido um grande trauma em sua vida na zona rural – traumas estes provocados por um ataque de pessoas brancas que resultou em uma grande perda -, rumam para sua nova casa, na região urbana em Los Angeles, em um bairro predominantemente branco. Agora, além de terem que lidar com as investidas de seus vizinhos racistas, terão também que lidar com estranhos fenômenos sobrenaturais que ocorrem em sua nova casa.

Apesar de conter fortes elementos de terror sobrenatural, especialmente durante as manifestações que ocorrem no interior da casa povoada por estranhas entidades, o verdadeiro horror ocorre quando os personagens principais se veem diante da ameaça terrena. É incrível como a série consegue criar situações de tensão, deixando os protagonistas em perigo real, mostrando quão frágeis eles são e o quão rápido sua situação pode piorar.

Seja no trabalho, na escola ou tendo que lidar com a polícia e os vizinhos racistas, é notório o fato de que uma vez que são considerados “pessoas de interesse” por toda a população branca, não resta aos pretos nem mesmo um breve momento para relaxar, pois precisam se provar como bons cidadãos o tempo todo, já que seus párias não deixam passar nada. Uma simples festa com os funcionários do serviço ou uma breve pausa no trabalho, já é suficiente para colocar em xeque toda a vida que Henry Emory (Bashy, Ashley Thomas), o patriarca da família, está tentando criar ali.

Them Emory
Them / 2021 © Cortesia Amazon Studios 2

A composição de Bashy é incrível, apesar de ligeiramente forçada em alguns momentos pelo texto – afinal, quais as chances de uma pessoa sofrer tantos traumas seguidos acompanhados por uma esposa que também atrai problemas incessantemente, dando a impressão de que o próprio universo está contra eles, fato este que será discutido a seguir. Henry é um homem fragilizado, traumatizado pela guerra e que faz de tudo, mesmo que precise utilizar da violência para proteger seu maior tesouro, que é a sua esposa e suas filhas.

As filhas do casal, Gracie (Melody Hurd) e Ruby (Shahadi Wright Joseph), estão brilhantes. A primeira, muito mais jovem, é frágil e forte ao mesmo tempo, sendo uma criança inocente na maior parte, mas entregando explosões de raiva em dados momentos. A segunda, a filha adolescente, enquanto se esforça para ser madura, ajudar com os problemas da família e lidar com o bullying na escola, se mostra uma adolescente comum, com vaidades, inseguranças, curiosidades e necessidades humanas.

Mas os holofotes ficam mesmo para a mãe das meninas e esposa de Henry, Lucky (Deborah Ayorinde), cujo nome é bastante controverso na série, já que ela sofre grandes marés de azar e não sorte. Mas a composição de Ayorinde é impressionante. Desde o primeiro frame, a atriz mostra a que veio, entregando uma personagem feminina forte, disposta a defender sua família como uma leoa, mas sofrendo grandemente quando fracassa. E após fracassar de uma maneira trágica, reúne toda a sua fúria para que isso jamais aconteça, o que resulta em explosões contra seus novos opressores brancos.

Them Lucky e Gracie
Them / 2021 © Cortesia Amazon Studios

Lucky representa a essência da série, uma pessoa preta, dotada de uma herança genética riquíssima, mas que por ser diferente, acaba por ser censurada por seus párias brancos das mais variadas formas, levando-a a um colapso de loucura. E é exatamente isso que as forças sobrenaturais desejam. Ao se aproveitar dos sentimentos negativos de todos os membros da família, eles se fortalecem, manipulando as mentes de suas vítimas e levando-os a cometerem atrocidades.

Em contrapartida, no núcleo branco do elenco, quem mais se destaca é a rival direta de Lucky, Betty (Alison Pill), uma dona de casa exemplar, que mora na casa do outro da lado rua dos Emory e que não tolera a presença da família preta em sua comunidade, utilizando-se de todo tipo de intrigas para manipular seus aliados, fomentando ataques cada vez mais agressivos contra seus páreas. A atuação de Pill é digna de nota, com nuances extremamente sutis e um sorriso enigmático que diz várias coisas diferentes em diferentes situações.

Them Beth
Them / 2021 © Cortesia Amazon Studios

Algo que precisamos mencionar aqui é o fato de a série possuir duas ramificações de terror que, apesar de andarem juntas ao longo da trama, podem levantar algumas questões relacionadas à necessidade da existência de ambas. Se o elemento humano já é assustador e perturbador o suficiente (muitas vezes mais perturbador e assustador do que as situações em que envolvem o sobrenatural), qual a necessidade de incluir na série elementos de terror sobrenatural? E é aí onde mora o triunfo, pois, a série é bastante feliz ao trabalhar com esses dois contrapontos, uma vez que um complementa o outro. Os elementos sobrenaturais existem, na verdade, para ilustrar de forma simbólica, ao mesmo tempo que potencializa em proporções esmagadoras, os sentimentos provocados pela opressão branca.

Com uma direção de fotografia lindíssima, uma direção primorosa e que sabe filmar de forma peculiar a fim de causar grandes estranhamentos por parte do público, além de uma trilha sonora extremamente bem realizada e músicas clássicas alternando com obras contemporâneas, sempre em momentos bastante pontuais e acertados, Them traz um enredo fechadíssimo, com um teor forte, mas necessário, e que apesar de não agradar todos os públicos, irá agradar os mais fortes e principalmente, claro, os fãs de terror. Uma pequena obra de arte que muito provavelmente será lembrada e revisitada por muito tempo.

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Them

País: EUA

Idioma: Inglês

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