John Ford é um cânone do cinema. É impossível ter uma formação completa na sétima arte sem ter tido contato com ao menos dez de seus filmes, e realmente não acho que estou exagerando. Ford é também umas das figuras principais na minha formação e é por isso que usarei do espaço gentilmente cedido para falar de alguns de seus principais filmes, começando pelo seu maior sucesso no cinema mudo, O Cavalo de Ferro (The Iron Horse, 1924).
É curioso perceber que o maior longa de Ford no período mudo (certamente o mais conhecido) não tem seu principal parceiro daquela fase, Harry Carey, como protagonista. Carey foi o primeiro ator a ter uma longeva e frutífera parceria com o diretor – o segundo, claro, foi John Wayne, que inclusive faz uma singela e implícita homenagem ao seu antecessor no final de Rastros de Ódio (The Searchers, 1956) – algo análogo às parcerias de Robert De Niro e Leonardo DiCaprio com Scorsese (para citar um exemplo que mesmo o leitor ainda novato em cinema clássico consiga entender).
Divagações à parte, em O Cavalo de Ferro acompanhamos a história da construção da primeira ferrovia transcontinental, ou seja, uma estrada que ligaria os Estados Unidos da costa leste até a oeste. Por essa razão vemos nos créditos iniciais uma dedicatória à Abraham Lincoln, que é personagem no longa – e voltaria para o cinema do diretor no excelente A Mocidade de Lincoln (Young Mr. Lincoln, 1939) – já que foi o presidente responsável pela “marcha para o Oeste”.
A ambição aqui é enorme, em todos os sentidos: um filme mudo de 150 minutos feito nos Estados Unidos e que ultrapassa o orçamento original – tudo porque William Fox estava apressado para responder ao sucesso do western de uma concorrente. A disputa dos estúdios acabou gerando, indiretamente, o primeiro grande épico da carreira do realizador, que havia até então ganhado reputação por filmar rápido, chegando a entregar algo próximo de um filme por dia para a produtora – assim como Hitchcock, o cinema mudo foi uma grande escola para John Ford.
Desta feita, a obra pesa na dicotomia de caráter que é bem particular ao Western Clássico: sem muitas ambiguidades – o bom é só bom e o mal é só mal; é assim que a lenda do herói americano é forjada aqui. Precisamos entender, no entanto, que estamos diante de algo que data de quase 100 anos e que é produto do pensamento de sua época – é importante problematizar as representações (como farei abaixo), mas buscando compreender o contexto em que foram produzidas.
Sendo assim, algo que me chama atenção aqui é o cuidado com as reações, os famigerados reaction shots. A montagem é sempre ágil quando mostra as expressões dos personagens no decorrer da cena, mas consegue não perder ritmo no processo – parece algo tão simples, mas que sempre me incomoda, especialmente em obras do começo da década de 20.
Nota-se, por fim, que este é um filme um tanto quanto “Griffithniano” em alguns aspectos: a quantidade de extras que povoam o quadro, uma sensação de macrocosmo (você sente que existe um mundo fora do campo da câmera, a tela se estende de forma centrífuga, como diria Bazin), além das representações enfáticas e invariantes: o indígena representado como selvagem imoral, perseguindo o trem quase como o cão persegue a carroça; o herói, homem branco heterossexual cristão americano, claro; e a presença quase divina de Lincoln (reforçando a lenda), que parece – visualmente, através da iluminação, decupagem e encenação; e narrativamente, com suas ações e palavras – um anjo em meio aos mortais.
Dessa forma, no geral, O Cavalo de Ferro é bastante constante, sem grandes erros (especialmente tendo em conta sua duração) mas não é – nem de longe – um dos melhores filmes de Ford. Sua importância histórica é inegável, sua ambição é inspiradora, e sua técnica é persuasiva, mas não está entre os soberanos de seu tempo (ao menos essa é minha impressão ao escrever a crítica).